sexta-feira, 9 de março de 2012

O Levantar

O céu noturno tornou-se ainda mais escuro com o início do cântico. As nuvens distantes esticavam longos dedos retorcidos para agarrar a lua cheia, com seu rosto amarelado-cinzento, que mais parecia a carcaça de alguma criatura inchada que fora abandonada para apodrecer no firmamento.

O vento chegou sorrateiramente, conjurado pelas sílabas profanas que se espalhavam pelo cemitério com um tom confiante e opressor de dominação. E ao chegar, tocava cada galho nu, trazendo sua frieza mórbida e fazendo os mais finos tremerem e agitarem-se, desprotegidos, indefesos, sujeitos às desgraças que logo ali ocorreriam.

Os habitantes da noite foram atraídos pelo espetáculo sombrio que aos poucos se desenrolava. Aranhas observavam atentas de suas teias, morcegos voavam mais baixo, vermes abriam caminho pelo solo até a superfície e corvos curiosos assistiam ao ritual, espalhados pelas árvores mais distantes e pousados nos muros cobertos de musgos.

O cântico sinistro prosseguia, mas não era entoado por nenhuma voz viva. A entidade que o proferia encontrava-se de pé diante de uma cova recente, trajada com os resquícios do que um dia fora uma elegante bata sacerdotal. Suas costelas amareladas eram visíveis pelos rasgos nas vestes e, abrigadas por elas, dois sacos de tecido escuro e necrosado inflavam-se e esvaziavam-se em um ritmo incomum, desacostumados ao movimento. Quando murchavam, faziam surgir um sussurro áspero que saía pela boca da criatura sem lábios e aumentava em volume de uma maneira sobrenatural ao se dispersar pelo ar.

Não havia ninguém ainda vivo pelas redondezas que pudesse ouvir aquela voz. Se houvesse, sentiria a presença marcante da morte no local, com uma certeza assustadora e desanimadora. Não apenas pela voz do além-túmulo, mas pela sensação de perdição que tomava o ambiente e pela ausência de cor na paisagem, trazendo à tona as lembranças mais lúgubres como se elas fossem as únicas que pudessem ser recordadas.

Os versos entoados adquiriram um tom mais agressivo e o orador passou a agitar seus braços esqueléticos ao ritmo dos sons, como um maestro fantasmagórico regendo uma sinfonia fúnebre. A resposta de seus gestos, porém, não vinha de outros músicos ou instrumentos, e sim de tendões enterrados a sete palmos da superfície. Puxados por sinistros fios invisíveis, eles faziam os dedos do cadáver contraírem-se e lembrarem-se de como era se movimentar.

A mente do orador atravessava o solo úmido e entrava em comunhão com o defunto, estabelecendo completo controle sobre seu corpo. Seus braços e pernas contraíam-se bruscamente, sua mandíbula abria-se e fechava, mastigando despropositalmente a terra que o envolvia e, aos poucos, bem aos poucos, ele subia em direção ao ar livre.

Após inúmeras repetições do cântico profano, a superfície do solo do cemitério agitou-se e uma mão acinzentada surgiu, agarrando o ar noturno. Pouco depois, a cabeça do falecido infeliz também erguia-se do chão, sacudindo-se, livrando-se da terra que a cobria, porém, sem muito sucesso, já que as lacerações no rosto e no pescoço ainda retinham consideráveis porções. Os olhos finalmente abriram-se, arregalaram-se, e, combinados com a boca podre escancarada, pareciam exprimir intensa dor e raiva. Era, porém, uma impressão que não condizia com a realidade. Aquela era uma criatura desprovida de emoções e sentimentos. Uma marionete decadente. Um reles instrumento nas mãos daquele que o invocara.

Ou, ao menos, era assim que deveria ser.

Sem o conhecimento do bruxo necromante, uma fagulha de consciência acendeu-se na mente do cadáver. Um mero resquício de sua mente desperta, uma recordação de uma vida inteira vivida, aproveitada e fatidicamente terminada.

Suas mãos apalpavam a terra, que ainda cobria metade de seu corpo, sem saber por que e até mesmo sem entender que substância era aquela. Sua boca continuava abrindo-se e fechando repetitivamente, trazendo a lembrança de que poderia haver algo ali para mastigar, mas o quê?

Mais alguns instantes e o corpo inteiro já se encontrava livre da terra. Estava de pé, mas sem firmeza, sem postura. Os joelhos não conseguiam esticar-se completamente e as mãos teimavam em erguer-se, mas não tinham um objetivo e voltavam a cair pelo lado do corpo. Os olhos de aparência assustada sondavam os arredores, imitando um comportamento vivo, como se buscasse descobrir algo sobre o local, mas não era uma ação instintiva e, sim, um reflexo remanescente de situações ocorridas durante a vida.

Desde que se colocara de pé, não estava sendo controlado por aquele que o convocara. Havia uma certa autonomia no cadáver que lhe permitia movimentar-se, mas sem objetivo, apenas uma paródia de um ser humano. E cada movimento fazia um lampejo de memória acender-se por um mero instante na mente do defunto.

O necromante retomou as rédeas de seu servo e instruiu-o a acompanhá-lo para fora dali. O estágio de decomposição do mestre era ainda pior que o do criado, mas ele era de uma natureza diferente, chegara àquele estado por vontade própria, através de encantos proibidos e do sacrifício de sua própria alma e, portanto, mesmo com pouquíssima carne ainda presa aos seus ossos, movia-se com mais firmeza e velocidade.

Do lado de fora dos portões do cemitério, uma escolta sepulcral os aguardava. Eram cinco mortos reanimados, assim como aquele que acabara de levantar-se de sua cova, frutos de rituais anteriores de seu mestre. Cinco guardiões decrépitos, podres e medonhos, cinco marionetes desmortas que poderiam lançar-se impiedosamente contra aqueles que ousassem cruzar o caminho do bruxo. Se tal embate ocorresse, seria um confronto de enorme injustiça, pois aqueles guerreiros do além-túmulo não eram submetidos à dor ou ao cansaço, continuariam lutando mesmo que tivessem seus membros decepados, além de portarem cruéis armamentos, as mesmas espadas e machados velhos que empunhavam em vida.

Encobertos pela noite, a sombria procissão espectral, líder e soldados, partia em direção a seu refúgio, oculto nas trevas do horizonte. O amanhecer aproximava-se e trazia a luz do sol, um grande e inevitável incômodo. Pelo menos durante algumas horas, os vivos estariam livres daquelas presenças malignas, até a hora do próximo anoitecer, quando os mortos novamente se levantariam e caminhariam pela terra.