A lua cheia iluminava a velha estrada que rumava da
pacata cidade de Karg à capital de Darkon, Il Aluk. E nesta estrada, ignorando
os perigos da noite, caminhava uma figura solitária. Suas botas, gastas e
sujas, atingiam o chão silenciosamente à medida em que ele avançava pela
estrada. Os restos de sua capa rasgada balançavam com o vento, e seu rosto se
encontrava totalmente coberto por um capuz, deixando à mostra apenas os longos
cabelos loiros. O medo da noite havia abandonado o viajante, que lutava com muitas
perguntas e poucas respostas em sua mente. O cheiro do mato trazido pelo vento
o remetia a antigas memórias de uma terra distante e fazia renascer em seu
coração o medo de nunca vê-la novamente.
"Dois
anos", ele pensava, "dois anos longe de minha terra, de minha gente,
e de tudo que foi feito pelos deuses, abandonado em um reino sombrio nos
confins do mundo." O cheiro que vinha dos bosques à beira da estrada o
fazia lembrar das florestas de seu lar, mas havia algo de diferente no aroma
destes bosques. Uma leve fragrância que diferenciava estas árvores das árvores
de Cormanthor, onde ele havia nascido e crescido, apesar de serem aparentemente
as mesmas árvores. Era um odor de maldade, de perversão. Estas eram as únicas
coisas que ele podia associar ao que cheirava.
Ele
sabia dos perigos que espreitavam por estes bosques, mas havia aprendido a
lidar com eles. As feras da floresta não representavam mais perigo, uma vez que
ele aprendeu como acalmá-las, e a única coisa com que ele se preocupava era com
os filhos da noite. Assim eram chamadas as criaturas que vagavam pelas ruas e
estradas após o pôr-do-sol, e que povoavam os pesadelos do povo de Darkon.
Ninguém sabia muito sobre sua natureza, e as lendas populares apenas ajudavam a
manter o mistério em torno de tais seres. "Vampiros", alguns diziam,
e "lobisomens", outros acreditavam, mas o que importava para o
simples povo de Darkon não era o nome dos seres, e sim, o medo que eles traziam
às cidades. Não era raro um corpo ser encontrado pela manhã, morto sem razão
aparente. Simplesmente privado do direito de viver, sem marcas, ferimentos, ou
sinais de doença. Apenas morto. Os físicos e estudiosos diziam que estes pobres
infelizes sofriam do coração, mas eram desmentidos pelas famílias dos
falecidos. E cada novo caso sem explicação contribuía para aumentar o medo e a
superstição.
Subitamente,
um ruído no mato chamou a atenção do andarilho e o fez esquecer momentaneamente
seus pensamentos. Havia alguma coisa naqueles arbustos, ele tinha certeza. E
não era um animal, pelo tamanho do vulto que ele avistou. Ele cerrou um pouco
os olhos para ver melhor, e algo o surpreendeu, fazendo seu coração parar por
um instante, como se algo estivesse errado. Ele notou que o bosque estava em
silêncio à volta daquela figura, pois ele era do povo dos elfos, e possuía o
dom de perceber melhor os sons à sua volta. E ele percebeu que os únicos sons
vindos do bosque estavam distantes do vulto, até mesmo os insetos noturnos que
não fogem à presença de outros seres maiores.
O
brilho da lua refletiu-se na espada desembainhada enquanto ele se aproximava
dos arbustos, olhando atentamente na direção do vulto. Ele então conseguiu
visualizar os olhos daquela criatura, que tinha a forma de um homem, mas andava
curvada e arrastando-se, porém, de uma forma rápida, que não combinava com seus
movimentos. Os olhos eram amarelos como os olhos de um lobo, e estavam olhando
em sua direção. Naquele momento, o elfo se conscientizou sobre a natureza
daquele ser. Ele tinha a certeza de que não era algo vivo, mas também não
estava morto. Morto-vivo. A descoberta fez o sangue em suas veias correr mais
rápido, e ele deixou de lado todo o cuidado que estava tendo até aquele momento
e adentrou o bosque impetuosamente.
A
criatura não esperou a chegada do inimigo e saltou sobre ele como um animal.
Neste momento, a luz da lua o atingiu, e o elfo pôde ver por um breve instante
a aparência do morto-vivo. Seus cabelos eram escassos e havia feridas antigas
por toda sua pele. Suas roupas eram trapos que pareciam estar ali apenas por
não terem sido retiradas, não demonstrando nenhuma utilidade. Suas unhas haviam
se tornado garras, e estas cortaram o capuz que cobria o rosto do guerreiro.
Sua reação foi imediata: sua espada cortou o ar, e um dos braços podres caiu no
chão, revelando um sangue escuro e malcheiroso. A criatura não demonstrou ter
sentido o golpe, e teria continuado seu feroz ataque se a espada élfica não
atacasse novamente. Desta vez, a cabeça semi-decomposta caiu ao chão, seguida
do corpo.
O elfo
ainda ficou por alguns instantes, parado em frente ao corpo decapitado,
questionando-se sobre a criatura. Não era apenas um corpo animado, ele pensou.
Este movia-se como uma fera selvagem, e havia expressão em seus olhos, o que
ele nunca havia visto em um servo morto-vivo. Um outro barulho nas profundezas
do bosque interrompeu suas conclusões: desta vez era um gemido, mais vívido, de
alguém que ainda respirava. Ele correu instintivamente na direção do som,
esperando encontrar alguém ferido pela criatura que ele havia derrotado.
Quando
chegou ao local de origem do ruído, percebeu que estava certo. Caído ao pé de
uma árvore, havia um homem caído de bruços, com uma espada quebrada ao seu
lado. Suas roupas eram de qualidade, porém bastante sujas de terra e sangue, e
os ferimentos em seus braços e costas podiam ser vistos claramente, ferimentos
de mordidas e arranhões. O homem levantou um pouco sua cabeça e olhou na direção
do elfo. Ele pareceu satisfeito com sua presença, demonstrando um esboço de
sorriso de sua boca ensangüentada. O elfo se aproximou, e já se preparava para
tratar de seus ferimentos, quando o homem ferido murmurou algumas palavras,
interrompidas por engasgos e tosses:
-
Seu tolo... agh... é uma... emboscada...
O elfo
levantou-se de um salto e começou a recuar a partir do lugar onde estava o
homem caído, olhando rapidamente para todas as direções e procurando ouvir algo
que o alertasse da presença de atacantes. Então ele percebeu movimentos em toda
a sua volta. Ele estava cercado. Cerca de dez mortos-vivos semelhantes àquele
que ele derrotara saíam das entradas sombrias do bosque e fitavam-no com
olhares famintos. Por um breve momento ele pensou que este tipo de morto-vivo
matava para alimentar-se. O sombrio grupo avançava em sua direção enquanto ele
recuava, embainhando a espada e preparando o arco. Antes que eles pudessem dar
dois passos, duas flechas voaram entre eles e acertaram dois deles, mas não foi
o suficiente para derrubá-los. O elfo recuava sem olhar para onde estava indo,
e acabou batendo suas costas em uma árvore. Antes de virar-se e contornar o
tronco, ainda disparou uma última flecha, que acertou entre os olhos de um que
já havia sido atingido, eliminando-o. Os outros passaram por cima do corpo do
semelhante caído, sem demonstrar reação à sua segunda morte, e também
contornaram a árvore, procurando por sua caça. Mas, do outro lado do tronco não
havia nada.
Os
mortos-vivos mostraram-se surpresos, procurando e farejando. Um deles, que
estava mais próximo da árvore, levou um chute na nuca e caiu sobre a ponta de
um galho quebrado numa árvore próxima. Ainda se mexia, mas estava preso ao
galho. Os outros então viraram-se e viram o elfo saltando de um galho mais alto
da árvore entre eles, acertando dois deles com sua espada e recuando do círculo
de criaturas para melhor defender-se.
Enquanto
recuava, fitando cada movimento de seus oponentes, uma luz brilhou atrás deles,
atrapalhando um pouco sua visão noturna. Era o brilho de uma estrela, ou algo
semelhante, que não devia estar ali. A luz fez os mortos-vivos olharem para
trás na direção dela e, ao recebê-la em seus olhos, metade deles gritou e
fugiu. A luz parecia mais forte, como se estivesse se aproximando, e começou a
diminuir. O elfo então pôde perceber que ela provinha de um objeto na mão de
alguém que já se encontrava a meros passos dos mortos-vivos. Quando o clarão
cessou totalmente, ele conseguiu reconhecer a silhueta do homem que estava
caído a alguns metros dali, agora de pé, e com uma maça em sua mão, pronto para
combater as criaturas novamente.
Restavam
apenas quatro delas agora. Os dois homens instintivamente tiveram a certeza de
que estariam lutando do mesmo lado, pelo menos nesta luta. E isto os fortaleceu
de alguma forma. Tendo a confiança de não estar lutando sozinhos, os dois
rapidamente terminaram a semi-vida de seus inimigos. Mas, assim que o último
deles tombou, o homem de ricas roupas caiu de joelhos, perdendo a firmeza em
sua arma. O elfo logo estava ao seu lado, tentando de alguma forma ajudar o
homem ferido. Ele apenas fez um sinal com a cabeça, liberando o elfo de tal
responsabilidade, e disse:
-
É tarde demais. Permita que eu morra em paz.
-
Não... Você quis lutar com aquelas criaturas,
mesmo à beira da morte... não merece morrer assim..
-
É inútil tentar me ajudar! Ouça o que estou lhe
dizendo! A mordida deles era venenosa. E este veneno já fez seu efeito... Logo
eu me tornarei um deles... Se quer fazer algo por mim, não me deixe ser privado
de meu descanso eterno. Assim que meu coração bater pela última vez, eu já
serei um deles. A não ser que meu corpo não esteja preservado...
-
O que você quer dizer com isso? Me diga pelo
menos o que eles eram. Você parece saber mais do que eu sobre eles...
-
Carniçais... mortos-vivos... Trazidos de volta da
morte pela gula e cobiça, pela vontade de querer sempre mais... e espalhando
sua maldição entre suas vítimas... – O
homem puxou sobre seu peito um símbolo sagrado religioso, representando um
brasão com uma balança sobre um martelo.
-
O símbolo da ordem de Tyr... – aquilo deu ao
elfo a certeza de que este homem sabia algo sobre sua terra natal – Você... de
onde você é?
-
Uma vez eu fiz parte da ordem de Tyr em Cormyr...
mas isso foi há muito tempo...
-
Meu nome é Gunthar. Nasci em Cormanthor e morei
em Shadowdale por vários anos... até vir parar aqui...
Os olhos do homem pareceram acender-se novamente com
a chama da vida. Ele havia acabado de receber, em seus últimos instantes de
vida, uma nova esperança. – Você... você deve saber então... – ele retirou de
um bolso duas jóias ovais brilhantes, uma vermelha e uma marrom. – Estas...
estas são apenas uma parte de um todo. Se todas as sete jóias puderem ser
encontradas e reunidas, elas revelarão um caminho para aquele que as possui...
Eu não tive o tempo suficiente para encontrar todas elas, mas você terá...
tome.
Gunthar
tomou as pedras em sua mão, e naquele momento, ficou ciente da importância
delas. Elas seriam agora seu tesouro, aquilo que ele protegeria a qualquer
custo. Pois elas seriam sua passagem de volta para casa.
O
homem segurou a mão do elfo e, em seus últimos suspiros, disse:
-
Eu já lhe dei algo de valor. Algo mais importante
do que qualquer outra coisa que você possa encontrar nestas terras. Agora lhe
peço que cumpra minha vontade. Não lhe considerarei meu carrasco por isso...
mas meu salvador. Faça o que deve ser feito. Conceda- me meu descanso de
direito...
-
Assim será feito. Sua ajuda foi maior do que você
imagina. Adeus, amigo.
Gunthar levantou-se e ergueu sua espada com as duas
mãos, esperando o momento certo, sem querer privar o homem de seus últimos
segundos de vida. Ele então percebeu que não sabia o nome daquele que o ajudara
nesta noite. Seus lábios moveram-se para fazer a pergunta, mas ele foi
interrompido pelo súbito movimento do homem a seus pés: seus olhos estavam
arregalados, mostrando a cor amarelada típica dos olhos das criaturas que eles
acabaram de derrotar, e sua boca se arreganhava, revelando dentes afiados e
totalmente diferentes do que haviam sido momentos antes.
A
espada cortou o ar e atingiu o pescoço do homem, interrompendo seus gritos
inumanos.
-
Está feito. Espero que ele tenha encontrado seu
merecido descanso.
O elfo olhou mais uma vez para as pedras que havia
recebido, e as imagens de seu lar enchiam sua mente. As árvores verdejantes, os
rios, os animais inofensivos, a felicidade e a despreocupação no rosto das
pessoas. Ele só precisava encontrar mais cinco jóias daquelas, onde quer que
elas estivessem. Mas agora haveria algo mais para ajudá-lo: esperança. Um sinal
de que ele não ficaria perdido nestas terras para sempre. De que ele veria seu
lar novamente.
Gunthar agora retomava a estrada. O sacerdote havia
sido devidamente enterrado e uma oração a Tyr havia sido feita pelo elfo. Ele
não era um seguidor de Tyr, mas lembrava-se de algumas orações para aquele
Deus. A estrada parecia ligeiramente mais clara e mais segura agora. As
preocupações pareciam ter se esvaído de sua mente, juntamente com seus medos. A
única coisa com que ele se preocupava agora era chegar em Il Aluk, capital de
Darkon, e iniciar sua procura pelas outras jóias. Ele havia ouvido falar sobre
o Rei Azalin de Darkon, um poderoso mago, e imaginava se poderia conseguir
alguma informação com este rei.
Faltavam apenas cinco jóias.