terça-feira, 10 de julho de 2012

Além da Fronteira da Névoa


            A lua cheia iluminava a velha estrada que rumava da pacata cidade de Karg à capital de Darkon, Il Aluk. E nesta estrada, ignorando os perigos da noite, caminhava uma figura solitária. Suas botas, gastas e sujas, atingiam o chão silenciosamente à medida em que ele avançava pela estrada. Os restos de sua capa rasgada balançavam com o vento, e seu rosto se encontrava totalmente coberto por um capuz, deixando à mostra apenas os longos cabelos loiros. O medo da noite havia abandonado o viajante, que lutava com muitas perguntas e poucas respostas em sua mente. O cheiro do mato trazido pelo vento o remetia a antigas memórias de uma terra distante e fazia renascer em seu coração o medo de nunca vê-la novamente.
"Dois anos", ele pensava, "dois anos longe de minha terra, de minha gente, e de tudo que foi feito pelos deuses, abandonado em um reino sombrio nos confins do mundo." O cheiro que vinha dos bosques à beira da estrada o fazia lembrar das florestas de seu lar, mas havia algo de diferente no aroma destes bosques. Uma leve fragrância que diferenciava estas árvores das árvores de Cormanthor, onde ele havia nascido e crescido, apesar de serem aparentemente as mesmas árvores. Era um odor de maldade, de perversão. Estas eram as únicas coisas que ele podia associar ao que cheirava.
Ele sabia dos perigos que espreitavam por estes bosques, mas havia aprendido a lidar com eles. As feras da floresta não representavam mais perigo, uma vez que ele aprendeu como acalmá-las, e a única coisa com que ele se preocupava era com os filhos da noite. Assim eram chamadas as criaturas que vagavam pelas ruas e estradas após o pôr-do-sol, e que povoavam os pesadelos do povo de Darkon. Ninguém sabia muito sobre sua natureza, e as lendas populares apenas ajudavam a manter o mistério em torno de tais seres. "Vampiros", alguns diziam, e "lobisomens", outros acreditavam, mas o que importava para o simples povo de Darkon não era o nome dos seres, e sim, o medo que eles traziam às cidades. Não era raro um corpo ser encontrado pela manhã, morto sem razão aparente. Simplesmente privado do direito de viver, sem marcas, ferimentos, ou sinais de doença. Apenas morto. Os físicos e estudiosos diziam que estes pobres infelizes sofriam do coração, mas eram desmentidos pelas famílias dos falecidos. E cada novo caso sem explicação contribuía para aumentar o medo e a superstição.
Subitamente, um ruído no mato chamou a atenção do andarilho e o fez esquecer momentaneamente seus pensamentos. Havia alguma coisa naqueles arbustos, ele tinha certeza. E não era um animal, pelo tamanho do vulto que ele avistou. Ele cerrou um pouco os olhos para ver melhor, e algo o surpreendeu, fazendo seu coração parar por um instante, como se algo estivesse errado. Ele notou que o bosque estava em silêncio à volta daquela figura, pois ele era do povo dos elfos, e possuía o dom de perceber melhor os sons à sua volta. E ele percebeu que os únicos sons vindos do bosque estavam distantes do vulto, até mesmo os insetos noturnos que não fogem à presença de outros seres maiores.
O brilho da lua refletiu-se na espada desembainhada enquanto ele se aproximava dos arbustos, olhando atentamente na direção do vulto. Ele então conseguiu visualizar os olhos daquela criatura, que tinha a forma de um homem, mas andava curvada e arrastando-se, porém, de uma forma rápida, que não combinava com seus movimentos. Os olhos eram amarelos como os olhos de um lobo, e estavam olhando em sua direção. Naquele momento, o elfo se conscientizou sobre a natureza daquele ser. Ele tinha a certeza de que não era algo vivo, mas também não estava morto. Morto-vivo. A descoberta fez o sangue em suas veias correr mais rápido, e ele deixou de lado todo o cuidado que estava tendo até aquele momento e adentrou o bosque impetuosamente.
A criatura não esperou a chegada do inimigo e saltou sobre ele como um animal. Neste momento, a luz da lua o atingiu, e o elfo pôde ver por um breve instante a aparência do morto-vivo. Seus cabelos eram escassos e havia feridas antigas por toda sua pele. Suas roupas eram trapos que pareciam estar ali apenas por não terem sido retiradas, não demonstrando nenhuma utilidade. Suas unhas haviam se tornado garras, e estas cortaram o capuz que cobria o rosto do guerreiro. Sua reação foi imediata: sua espada cortou o ar, e um dos braços podres caiu no chão, revelando um sangue escuro e malcheiroso. A criatura não demonstrou ter sentido o golpe, e teria continuado seu feroz ataque se a espada élfica não atacasse novamente. Desta vez, a cabeça semi-decomposta caiu ao chão, seguida do corpo.
O elfo ainda ficou por alguns instantes, parado em frente ao corpo decapitado, questionando-se sobre a criatura. Não era apenas um corpo animado, ele pensou. Este movia-se como uma fera selvagem, e havia expressão em seus olhos, o que ele nunca havia visto em um servo morto-vivo. Um outro barulho nas profundezas do bosque interrompeu suas conclusões: desta vez era um gemido, mais vívido, de alguém que ainda respirava. Ele correu instintivamente na direção do som, esperando encontrar alguém ferido pela criatura que ele havia derrotado.
Quando chegou ao local de origem do ruído, percebeu que estava certo. Caído ao pé de uma árvore, havia um homem caído de bruços, com uma espada quebrada ao seu lado. Suas roupas eram de qualidade, porém bastante sujas de terra e sangue, e os ferimentos em seus braços e costas podiam ser vistos claramente, ferimentos de mordidas e arranhões. O homem levantou um pouco sua cabeça e olhou na direção do elfo. Ele pareceu satisfeito com sua presença, demonstrando um esboço de sorriso de sua boca ensangüentada. O elfo se aproximou, e já se preparava para tratar de seus ferimentos, quando o homem ferido murmurou algumas palavras, interrompidas por engasgos e tosses:
-         Seu tolo... agh... é uma... emboscada...
O elfo levantou-se de um salto e começou a recuar a partir do lugar onde estava o homem caído, olhando rapidamente para todas as direções e procurando ouvir algo que o alertasse da presença de atacantes. Então ele percebeu movimentos em toda a sua volta. Ele estava cercado. Cerca de dez mortos-vivos semelhantes àquele que ele derrotara saíam das entradas sombrias do bosque e fitavam-no com olhares famintos. Por um breve momento ele pensou que este tipo de morto-vivo matava para alimentar-se. O sombrio grupo avançava em sua direção enquanto ele recuava, embainhando a espada e preparando o arco. Antes que eles pudessem dar dois passos, duas flechas voaram entre eles e acertaram dois deles, mas não foi o suficiente para derrubá-los. O elfo recuava sem olhar para onde estava indo, e acabou batendo suas costas em uma árvore. Antes de virar-se e contornar o tronco, ainda disparou uma última flecha, que acertou entre os olhos de um que já havia sido atingido, eliminando-o. Os outros passaram por cima do corpo do semelhante caído, sem demonstrar reação à sua segunda morte, e também contornaram a árvore, procurando por sua caça. Mas, do outro lado do tronco não havia nada.
Os mortos-vivos mostraram-se surpresos, procurando e farejando. Um deles, que estava mais próximo da árvore, levou um chute na nuca e caiu sobre a ponta de um galho quebrado numa árvore próxima. Ainda se mexia, mas estava preso ao galho. Os outros então viraram-se e viram o elfo saltando de um galho mais alto da árvore entre eles, acertando dois deles com sua espada e recuando do círculo de criaturas para melhor defender-se.
Enquanto recuava, fitando cada movimento de seus oponentes, uma luz brilhou atrás deles, atrapalhando um pouco sua visão noturna. Era o brilho de uma estrela, ou algo semelhante, que não devia estar ali. A luz fez os mortos-vivos olharem para trás na direção dela e, ao recebê-la em seus olhos, metade deles gritou e fugiu. A luz parecia mais forte, como se estivesse se aproximando, e começou a diminuir. O elfo então pôde perceber que ela provinha de um objeto na mão de alguém que já se encontrava a meros passos dos mortos-vivos. Quando o clarão cessou totalmente, ele conseguiu reconhecer a silhueta do homem que estava caído a alguns metros dali, agora de pé, e com uma maça em sua mão, pronto para combater as criaturas novamente.
Restavam apenas quatro delas agora. Os dois homens instintivamente tiveram a certeza de que estariam lutando do mesmo lado, pelo menos nesta luta. E isto os fortaleceu de alguma forma. Tendo a confiança de não estar lutando sozinhos, os dois rapidamente terminaram a semi-vida de seus inimigos. Mas, assim que o último deles tombou, o homem de ricas roupas caiu de joelhos, perdendo a firmeza em sua arma. O elfo logo estava ao seu lado, tentando de alguma forma ajudar o homem ferido. Ele apenas fez um sinal com a cabeça, liberando o elfo de tal responsabilidade, e disse:
-         É tarde demais. Permita que eu morra em paz.
-         Não... Você quis lutar com aquelas criaturas, mesmo à beira da morte... não merece morrer assim..
-         É inútil tentar me ajudar! Ouça o que estou lhe dizendo! A mordida deles era venenosa. E este veneno já fez seu efeito... Logo eu me tornarei um deles... Se quer fazer algo por mim, não me deixe ser privado de meu descanso eterno. Assim que meu coração bater pela última vez, eu já serei um deles. A não ser que meu corpo não esteja preservado...
-         O que você quer dizer com isso? Me diga pelo menos o que eles eram. Você parece saber mais do que eu sobre eles...
-         Carniçais... mortos-vivos... Trazidos de volta da morte pela gula e cobiça, pela vontade de querer sempre mais... e espalhando sua maldição entre suas vítimas... – O homem puxou sobre seu peito um símbolo sagrado religioso, representando um brasão com uma balança sobre um martelo.
-         O símbolo da ordem de Tyr... – aquilo deu ao elfo a certeza de que este homem sabia algo sobre sua terra natal – Você... de onde você é?
-         Uma vez eu fiz parte da ordem de Tyr em Cormyr... mas isso foi há muito tempo...
-         Meu nome é Gunthar. Nasci em Cormanthor e morei em Shadowdale por vários anos... até vir parar aqui...
Os olhos do homem pareceram acender-se novamente com a chama da vida. Ele havia acabado de receber, em seus últimos instantes de vida, uma nova esperança. – Você... você deve saber então... – ele retirou de um bolso duas jóias ovais brilhantes, uma vermelha e uma marrom. – Estas... estas são apenas uma parte de um todo. Se todas as sete jóias puderem ser encontradas e reunidas, elas revelarão um caminho para aquele que as possui... Eu não tive o tempo suficiente para encontrar todas elas, mas você terá... tome.
Gunthar tomou as pedras em sua mão, e naquele momento, ficou ciente da importância delas. Elas seriam agora seu tesouro, aquilo que ele protegeria a qualquer custo. Pois elas seriam sua passagem de volta para casa.
O homem segurou a mão do elfo e, em seus últimos suspiros, disse:
-         Eu já lhe dei algo de valor. Algo mais importante do que qualquer outra coisa que você possa encontrar nestas terras. Agora lhe peço que cumpra minha vontade. Não lhe considerarei meu carrasco por isso... mas meu salvador. Faça o que deve ser feito. Conceda- me meu descanso de direito...
-         Assim será feito. Sua ajuda foi maior do que você imagina. Adeus, amigo.
Gunthar levantou-se e ergueu sua espada com as duas mãos, esperando o momento certo, sem querer privar o homem de seus últimos segundos de vida. Ele então percebeu que não sabia o nome daquele que o ajudara nesta noite. Seus lábios moveram-se para fazer a pergunta, mas ele foi interrompido pelo súbito movimento do homem a seus pés: seus olhos estavam arregalados, mostrando a cor amarelada típica dos olhos das criaturas que eles acabaram de derrotar, e sua boca se arreganhava, revelando dentes afiados e totalmente diferentes do que haviam sido momentos antes.
A espada cortou o ar e atingiu o pescoço do homem, interrompendo seus gritos inumanos.
-         Está feito. Espero que ele tenha encontrado seu merecido descanso.
O elfo olhou mais uma vez para as pedras que havia recebido, e as imagens de seu lar enchiam sua mente. As árvores verdejantes, os rios, os animais inofensivos, a felicidade e a despreocupação no rosto das pessoas. Ele só precisava encontrar mais cinco jóias daquelas, onde quer que elas estivessem. Mas agora haveria algo mais para ajudá-lo: esperança. Um sinal de que ele não ficaria perdido nestas terras para sempre. De que ele veria seu lar novamente.


           Gunthar agora retomava a estrada. O sacerdote havia sido devidamente enterrado e uma oração a Tyr havia sido feita pelo elfo. Ele não era um seguidor de Tyr, mas lembrava-se de algumas orações para aquele Deus. A estrada parecia ligeiramente mais clara e mais segura agora. As preocupações pareciam ter se esvaído de sua mente, juntamente com seus medos. A única coisa com que ele se preocupava agora era chegar em Il Aluk, capital de Darkon, e iniciar sua procura pelas outras jóias. Ele havia ouvido falar sobre o Rei Azalin de Darkon, um poderoso mago, e imaginava se poderia conseguir alguma informação com este rei.
           Faltavam apenas cinco jóias.