domingo, 17 de julho de 2016

Crônicas de dados e fogo

CRÔNICAS DE DADOS E FOGO
por Dave Gross

Muito antes de Crônicas de Gelo e Fogo, Martin ganhou fãs e elogios por trabalhos como A Morte da Luz (1977), Windhaven (com Lisa Tuttle, 1981), Sonho Febril (1982), e O Trapo do Armagedom (1983). Seu amor por quadrinhos (para não mencionar jogos) rendeu frutos quando ele editou a popular série Cartas Selvagens, e recebeu quatro prêmios Hugo, dois Nebula, um Bram Stoker e um Prêmio Mundial de Fantasia por histórias que vão desde ficção científica e terror até fantasia, um gênero coletivo que ele gosta de chamar "coisas estranhas". Para ver a bibliografia completa de Martin e muito mais, visite sua página em www.georgerrmartin.com.

George Richard Raymond Martin não é tão diferente de outros jogadores... exceto pela parte de prêmios de autor.
Nascido em 1948 em New Jersey, Martin demonstrou um talento precoce em escrever ao vender suas histórias de monstros para outras crianças por 5 centavos, o que sem dúvida ajudou a financiar seu recém-adquirido hábito de revistas em quadrinhos. Ele aumentou seus ganhos ao fazer sua primeira venda profissional para a revista Galaxy aos 21 anos. Depois de completar um mestrado na Universidade do Noroeste, Martin continuou a escrever como uma alternativa enquanto dava aulas de jornalismo até 1979, quando pôs-se a escrever em tempo integral e mudou-se para Santa Fe. Sete anos depois, ele entrou para a CBS para trabalhar primeiramente em Além da Imaginação e depois em A Bela e a Fera, série adorada pelos fãs. Depois de dez anos em Hollywood, ele uma vez mais pôs-se a escrever romances.
Lá ele começou a trabalhar a fundo em um projeto que havia começado anos antes, uma série de romances conhecida coletivamente como Crônicas de Gelo e Fogo. A saga mescla intriga política, drama de vingança e ação marcial com um hábil tratamento da magia do nível daquele outro autor de fantasia com um R duplo no nome. Seu primeiro volume, Guerra dos Tronos, provou que a fantasia épica ainda era vital e incentivou Anne McCaffrey a chamar a série de "fantistórica" por seus personagens e cenário autênticos. Com Duelo de Reis, tanto a audiência quanto o número de páginas cresceu em proporções colossais, e a tendência continuou com Tormenta de Espadas. Agora uma legião de fãs impacientes estão ansiosos pelo próximo volume, Festim dos Corvos.
Eles terão que esperar um pouco mais, admite Martin. Enquanto o livro ainda não está terminado, você pode ajudar a aliviar a dor da espera com amostras de alguns de seus capítulos-prólogo na edição 305 da Dragon. Ou, melhor ainda, continuar lendo para descobrir os pensamentos de Martin sobre escrita, história e jogos de interpretação.

A GRANDE HISTÓRIA
Com uma série que já se expande por três livros, cada um deles grande o suficiente para atordoar um lobo atroz, é difícil imaginar como George R. R. Martin mantém todas as famílias, alianças, eventos históricos, locais, e até mesmo nomes de espadas sob controle. Os fãs podem esperar que ele tenha uma ampla biblioteca de mapas e referências, mas ele diz que não é assim. "Tenho algumas anotações. Tenho alguns rascunhos e linhas do tempo. A  maioria ainda está entre minhas orelhas, que Deus nos ajude."
Tais admissões explicam porque um fã exigiu saber que planos Martin tinha feito para que outro autor terminasse a série num caso de seu derradeiro fim. Enquanto Martin se recusa a tentar o destino, sem se preparar para tal contingência terrível, ele promete que seus desígnios para o resto da história estão vivos e bem em sua própria imaginação. "De alguma forma, eu me lembro de Westeros e dos Sete Reinos melhor do que eu me lembro da minha vida real," ele diz. "Me lembro de detalhes sobre um personagem menor, mas não necessariamente de alguém que conheci na última convenção."
Escrever uma história tão grande quanto Crônicas de Gelo e Fogo é desafiador não apenas por sua extensão, mas também por sua complexidade. Cada volume anterior inclui pelo menos oito personagens pontos-de-vista, e o próximo promete ainda mais, incluindo os personagens no prólogo estendido. Ter tantos personagens focais permite que Martin mostre eventos por toda a parte de um grande mundo, mas isso pode ser arriscado. "O que um personagem faz obviamente afeta o que acontece com os outros personagens, e eles tem que reagir a isso," ele diz. "Então isso é um ato de malabarismo. Às vezes eu me sinto como se estivesse conduzindo uma carruagem. Eu comecei com dois cavalos, e aí eu tinha quatro, e agora tenho, tipo, dezesseis cavalos; todos eles querem ir em direções diferentes, e eu estou segurando as rédeas com todas as minhas forças. Mas, nas palavras imortais do Super Galo, 'Você sabia que o emprego era perigoso quando o aceitou.' Então, aqui estou eu."
Apesar de estar acostumado com rascunhos por causa de seus anos em Hollywood, onde eles são exigidos, ele não os faz para seus romances. "Tenho meu destino em mente," ele diz, "mas não sei necessariamente todas as curvas e desvios da rota que vai me fazer chegar lá. E às vezes os personagens o surpreendem. Eles o levam em direções diferentes que são mais ricas e mais gratificantes do que você havia pretendido."
"Infelizmente," ele acrescenta, "às vezes eles também o levam a becos sem saída. Esta é uma desvantagem do jeito que eu trabalho." Isso significa que às vezes Martin escreve longos trechos antes de decidir voltar e retrabalhar os eventos instigados por um personagem em ascenção, deixando capítulos inteiros de histórias que não se realizaram em seu disco rígido. Antes que você comece a ter esperanças de uma "versão do diretor" de Crônicas de Gelo e Fogo, Martin explica que talvez funcione desta forma para filmes, mas não para livros. "Estas coisas não são cenas removidas, e sim coisas que nunca aconteceram, ou coisas alternativas," ele explica. "Às vezes a história chega a voltar, e você usa o capítulo posteriormente no livro, ou usa partes dele, mas há uma boa quantidade de desperdício."
Ignorando os desejos de seus personagens mandões, Martin tem uma conclusão específica em mente para a história - incluindo o destino de cada um dos personagens principais. Ele admite que é possível mudar de ideia sobre o destino de um personagem antes do fim, mas insiste, "Não é possível me fazer mudar de ideia com uma carta de fã, então as pessoas que estão escrevendo para mim e tentando votar em um personagem ou outro - sempre fico feliz em ouvir o que eles tem a dizer, mas não sei se isso terá mesmo muito impacto na história. Isso não é Survivor. Você não pode votar pra alguém sair da ilha."
Como um amante de convenções e autor que é grato aos fãs, Martin sabe que não pode escapar completamente da influência externa. Ainda assim, ele aproveita a solidão de sentar-se sozinho na frente do computador enquanto esreve a história. Nesse ponto, ele diz, "Você tem que, tipo, esquecer sobre [os fãs] e esquecer sobre seus editores e editoras e agentes. Esquecer todas essas coisas e simplesmente seguir com os personagens, com a história, e o que eles estão dizendo que você faça. Essa é a voz verdadeira."
Esta voz verdadeira pode levar algum tempo a ser alcançada quando cada volume fica maior do que o anterior. "Sim, isso é um problema," ele diz. "Tormenta de Espadas estava justamente no limite de quão grande um livro pode ser. Ele foi dividido em dois na versão paperback na Inglaterra. A Bantam vai tentar conseguir a versão paperback barata em um volume, mas, meu Deus, vai ser um livro grande. Você vai ter síndrome de túnel carpal tentando segurá-lo na banheira."

OS QUE SE LEMBRAM DO PASSADO
Martin é um leitor tão voraz quanto é um autor prolífico. Entre suas matérias favoritas está história, que teve uma grande influência em Crônicas de Gelo e Fogo. "Eu queria escrever algo que estivesse mais próximo de ficção histórica," ele diz. "Eu até brinquei por um tempo com a ideia de não incluir nenhum elemento óbvio de fantasia. Por fim, decidi contra isso, e acabei incluindo os dragões e um pouco de magia, algumas coisas que estão relacionadas aos elementos tradicionais de fantasia - mas um número relativamente menor deles, comparado a algumas fantasias."
Embora os fãs tenham percebido ecos da Guerra das Rosas e da Guerra dos Cem Anos nos conflitos de Westeros, Martin tem interesse em muitos períodos históricos. "A maioria do meu interesse é nas eras pré-pólvora. Eu acho que a partir do momento em que as armas de fogo e os canhões e coisas do tipo aparecem, parece que eu perco um pouco do interesse. Então é a era das espadas e o que vem antes disso que são meus períodos favoritos."
Apesar de seu alicerce em autenticidade histórica, a saga de Westeros é inegavelmente uma fantasia, com elementos mágicos como dragões, os terríveis Outros, e a temida magia do deus vermelho R'hllor. A princípio, a magia foi tão sutil que parecia praticamente não-existente, mas isto está mudando. "Em cada livro, o nível de magia está subindo levemente, para que no final ele esteja maior. Alguns dos leitores de fantasia realmente fanáticos que estão lendo livros nos quais há magos lançando bolas de fogo a cada página não vão achá-la 'espetacular' nem no seu maior nível."
Martin acha que os elementos mágicos estão entre os mais difíceis de se escrever. "É muito difícil fazer isso bem. Eu tenho fortes sentimentos em relação à magia; eu acho que ela é usada de forma errada na maioria da fantasia. Até certo ponto, eu recorri ao Tolkien, e olhei o que ele fez, porque eu ainda acho que ele fez isso melhor do que qualquer um. Ele tem dragões, claro, e ele tem várias criaturas míticas, como o Balrog. A fantasia ruim trata os magos e outras criaturas sobrenaturais quase como super-heróis. Eles estão voando por aí, eles tem isso mágico e aquilo mágico. Gandalf e Saruman, seu poder é o conhecimento. Eles conhecem as coisas. Eles conhecem a história. Eles conhecem os saberes. Eles conhecem verdades antigas que outras pessoas já esqueceram, mas você não vê eles fazendo muito de magia de palco. Ao manter a magia sutil, ao mantê-la nos bastidores, ao não contar muito a respeito dela, eu acho que ela se torna mais poderosa. Eu acho que a magia deve ser mágica. Ela deve ser misteriosa e assombrosa. Você a vê e seus olhos... brilham."
O nível de magia é uma das maiores diferenças entre ficção de fantasia e mundos de jogos de fantasia. Às vezes, Martin acha que os autores cometem o erro de colocar convenções de jogos em seus mundos. "Há bastante fantasia agora onde eles desenvolvem sistemas de magia," ele diz. "Eu até recebo essa pergunta às vezes em convenções: 'Você pode nos falar um pouco sobre o seu sistema de magia?' Eu acho que isso é um erro. Isso só torna a magia em um tipo alternativo de ciência. Você pode ter diagramas de arames mágicos ali, e receitas mágicas onde você mistura essa quantidade de olho de sapo e essa quantidade de leite de virgem em pó, e você consegue esse efeito. Isso não é magia de verdade, é? Isso é só ciência que não funciona."

DIAS DE JOGO
Martin é um jogador de RPG há mais ou menos vinte anos, mais recentemente com um grupo que inclui os colegas autores Walter Jon Williams, Melinda Snodgrass, Vic Milan, e Jane Lindskold. Como muitos outros grupos de jogo, eles se encontram uma vez por semana, com interrupções ocasionais para viagens ou prazos finais de livros. Talvez seja chocante para jogadores de D&D, mas o sistema de escolha do grupo não é o sistema d20. Martin defende sua heresia:
"Quando eu comecei a jogar nos anos 80, nós jogávamos jogos diferentes. Nós jogávamos Morrow Project. Depois jogamos bastante Call of Cthulhu - esse foi um dos nossos favoritos durante anos - depois Superworld, que era um jogo de super-heróis. Por fim, ele deu origem à série Wild Cards. Eles eram todos divertidos, e nós tivemos muitos bons momentos com esses jogos, mas cada jogo tem seu próprio conjunto de regras. O que era chato nisso era que cada vez que você pegava um jogo, você tinha que aprender um conjunto diferente de regras. Aí apareceu o GURPS. Ele nos atraiu bastante, porque era um sistema que era bom para qualquer jogo."
O mestre de jogo de Martin é o colega escriba Walter Jon Williams, que tem uma campanha histórica que se passa no final da República Romana. "É um jogo muito realista. Não há elementos de fantasia. É quase parecido com os livros de John Maddox Roberts ou Steven Saylor. Diversas vezes, nós estamos resolvendo mistérios de assassinatos. Ou, quando isso não dá certo, estamos liderando exércitos nos campos de batalha ou lidando com problemas políticos, tentando preservar a República - e ao mesmo tempo avançar nossas próprias carreiras pessoais."
Não deve ser muita surpresa saber que um grupo de jogo que consiste principalmente de autores tende a enfatizar seus personagens sobre o combate. "Passamos noites inteiras sem rolar os dados. Nossos jogos pegam muito no lado interpretativo do jogo, com o Walter interpretando os personagens e nós interpretando nossos personagens, e essa é a diversão disso - a interação dos personagens."
Assim como todos os jogadores, Martin adora a chance de falar sobre seu personagem - ou melhor, seu personagem falecido. "Meu primeiro personagem era chamado Septimus Sempronius Gracchus," ele diz, garantindo que nós teremos que passar uma hora no Google checando a ortografia. "Havia dois políticos romanos muito importantes, os irmãos Gracchus. Eles eram radicais que queriam reforma agrária e concorriam à Tribuna; ambos foram assassinados. Eles eram tipo os irmãos Kennedy da Roma antiga. Septimus era um descendente deles, então ele também estava bastante em favor da reforma agrária. Ele era extremamente inteligente, mas era extremamente falante, como todos os meus personagens tendem a ser, porque eu tenho uma boca grande e gosto de falar. Roma tinha todo esse sistema de dever com seu patrono, e ele tinha isso de uma forma ainda mais exagerada. Infelizmente, os eventos levaram o pobre Septimus a uma situação em que ele tinha que trair seu patrono ou trair Roma. E não havia resposta em seu sistema ético, portanto como os romanos faziam, não tendo saída, ele caiu sobre sua espada."
Assim como todos os bons jogadores, Martin não culpa o GM por colocá-lo num beco sem saída. "Era uma situação que não podia ser salva, mas de alguma forma justa, considerando a política da época e a maneira como eu construí meu personagem. Mas foi traumatizante, porque eu adorava aquele personagem, e tinha jogado com ele por mais ou menos um ano e meio. Ele foi um grande personagem, e eu estava muito empolgado com ele, mas para ser fiel ao personagem, eu senti que ele tinha mesmo que fazer isso."
E, como todos os bons jogadores, Martin culpa seus colegas por não salvá-lo de seu destino precoce. "Os outros jogadores poderiam ter sido um pouco mais espertos em relação a isso. Eu tentei dar-lhes pistas, sabe. Septimus ficava passando e dizendo, 'Onde é o melhor local para esfaquear um homem para que não doa?' Ele escreveu seu testamento, e adotou o filho da irmã como seu próprio filho, e todas essas outras coisas preparando-se para a morte, mas nenhum dos outros personagens sacou, nem de longe, então todos eles ficaram muito chocados."
Assim como acontece quando ele escreve o fim de um personagem em Crônicas de Gelo e Fogo, Martin sabia que era o certo para a história, mas isso não quis dizer que seria mais fácil. "Foi difícil matar Septimus no jogo, e é difícil matar personagens na ficção quando você já investiu bastante neles e eles são algo em que você já trabalhou por muito tempo."

ESCREVENDO E INTERPRETANDO
Ainda pior do que a morte de um personagem de jogo foi escrever um evento sangrento em Tormenta de Espadas. Martin reconta com uma pesada tristeza: "Com certeza, o Casamento Vermelho no terceiro livro foi a coisa mais difícil que eu tive que fazer. Esse capítulo acontece mais ou menos na metade do livro, um pouco depois da metade - mas de forma alguma no final. Há centenas de páginas que o seguem. Ainda assim, foi o último capítulo que eu escrevi. Eu terminei tudo depois. Foi um capítulo muito difícil de se escrever."
Ver suas criações fictícias quantificadas para um jogo não preocupa Martin, mesmo ele sabendo que os designers devem às vezes adivinhar coisas que ainda não foram reveladas. "[Os mistérios] serão revelados pela primeira vez nos livros," ele diz. "Então os designers de jogos vão ter que dançar em volta disso." Martin já viu sua ficção ser traduzida para termos de jogo com o jogo GURPS Cartas Selvagens publicado pela Steve Jackson Games. Ironicamente, já que suas histórias de Wild Cards foram inspiradas em suas próprias experiências jogando Superworld.
Apesar de gostar tanto de jogos quanto de ficção, Martin garante não cruzar os rios. "Você tem que se lembrar que o jogo é um jogo e o livro é um livro, e eles não são a mesma coisa. Caso contrário, você pode se chatear bastante. Roger Zelazny sempre citava James M. Cain a respeito disso. Cain tinha um monte de livros feitos por Hollywood, e eles foram bem liberais com as mudanças feitas. Um entrevistador perguntou para ele, 'O que você acha do que Hollywood tem feito com seus livros?' E Cain respondeu, 'Hollywood não fez nada com meus livros. Está vendo? Eles estão bem ali na estante. Estão do jeito que eu os escrevi.' Os filmes são uma coisa separada. Roger sempre citava isso também, quando lhe perguntavam coisas do tipo, 'O que você acha de Damnation Alley?' Eu acho que faz sentido. Meus livros são meus livros, e vai ser interessante ver o que sai deles nos jogos, mas você não deve misturar os dois."
O verdadeiro perigo em misturar jogo e escrita é que um pode roubar tempo do outro. "Quando estou envolvido a fundo em um livro, eu posso jogar um jogo, mas eu não gostaria de administrar um jogo. Eu acho que ser o mestre do jogo é muito mais exigente. Quando eu fiz a campanha inicial de Superworld na década de 80 que acabou dando origem a Wild Cards, eu perdi algo em torno de um ano ali. Eu entrei nesse jogo tão a fundo que eu acho que Parris, minha namorada, estava quase chamando uma intervenção pra mim. Eu passava o dia inteiro no meu escritório inventando supervilões e rolando dados. Por fim, descobrimos um jeito de conseguir uns bons livros em cima disso e por coincidência ganhar algum dinheiro, mas estávamos só jogando obsessivamente por um longo período de tempo."
Se essa confissão não for suficiente para provar o crédito de Martin como jogador, ele tem uma confissão ainda mais reveladora a fazer. O cara é um min-maxer! Para criar a versão de jogo do Turtle, que se tornou seu personagem característico na série Wild Cards, Martin empurrou as regras do GURPS Supermundo até o limite. "Para fazer com que a armadura do Turtle chegasse na rigidez que eu queria naquele casco, para que os vilões não pudesse machucá-lo, e para aumentar sua telecinese até o poder em que ele pudesse causar um dano sério com ela, eu aceitei umas desvantagens bem pesadas, então o Turtle no jogo era basicamente um bebê deformado pela talidomida ali dentro daquele casco. Ele não tinha braços nem pernas - só nadadeiras. E ele era um anão, era meio-cego... ele ganhou pontos pra cacete! E isso produziu um personagem muito poderoso para a campanha de Superworld."
Isso tudo é normal e aceitável para uma campanha de supers, mas um personagem tão bizarro apresenta alguns problemas para um autor. "Eu queria escrever sobre um personagem bem mais realista, então eu criei o Tom Tudbury, que é em alguns aspectos um personagem bem autobiográfico, provavelmente bem mais do que qualquer outro que eu já tenha feito, porque ele cresceu em New Jersey - seu histórico no projeto - isso tudo é a minha própria vida. Então você pega um personagem que é bem mais sutil, bem mais balanceado, bem mais realista do que aquele personagem bastante extremo que foi criado para o jogo."

JOGANDO NOS SETE REINOS
Não é de se surpreender que Martin suspeita que uma boa campanha em Westeros seja bem parecida com suas próprias experiências de jogo. "Eu acho que um bom jogo nos Sete Reinos teria bastante do tempero de um bom jogo realista e medieval com o acréscimo de que você é livre para criar a história. O problema com ficção histórica é que se você já leu bastante sobre história, você sabe qual vai ser o resultado. Então você leu sobre a verdadeira Guerra das Rosas, e você sabe o que vai acontecer com aqueles dois príncipes na torre, e você sabe quem vai vencer a batalha de Bosworth Field. Não tem muito suspense aí."
O próprio GM de Martin tem que encarar estas questões a cada sessão. "Quando Walter está conduzindo seu jogo em Roma, ele tem que andar na corda bamba, porque nenhum dos nossos personagens realmente existiu na Roma antiga, mas nós estamos interagindo com pessoas que existiram, como Pompeu Magno e Júlio César e Cláudio e Catalina e Cícero, e alguns dos outros peso-pesados do final da República cujas ações e falhas e triunfos históricos são parte do registro histórico. Então o Walter está construindo um jogo ao redor destes eventos históricos. Até que ponto somos livres para mudá-los? O que acontece se matarmos Júlio César? O que acontece se vencermos uma batalha que era pra ter sido perdida, ou se perdermos uma batalha que era pra ter sido ganha? É uma apresentação de corda bamba.
"Um jogo de Gelo e Fogo teria a mesma estética, mais algumas outras coisas que você não tem, como dragões e a Muralha e os Outros, e as estações. Mas não teria essas limitações. Você poderia mudar a história, porque você está essencialmente criando a história à medida em que segue adiante."
Para grupos que preferem o combate, Martin sugere a Muralha como um excelente local para aventuras. Para jogadores que preferem intriga, que local seria melhor que Porto Real? Com o material de jogo nesta edição, leitores que sempre esperaram por um papel nos Sete Reinos podem finalmente participar da saga, que se entrega tão bem a jogos de aventura que jogos de Crônicas de Gelo e Fogo já começaram a aparecer. Um card game e sua primeira expansão já foram lançados e estão se saindo bem. Martin também assinou um contrato para um RPG que deve chegar às lojas de jogos até o final do ano. Algumas empresas propuseram fazer jogos de computador, mas nenhum acordo foi feito. Se e quando isso acontecer, Martin tem esperanças específicas para o tipo de jogo que ele será. "Eu não gostaria de vê-lo feito como um tipo de jogo do tipo hack-and-slash, onde monstros vem pulando e você fica batendo neles com sua espada e suas cabeças ficam voando com grandes poças de sangue. É exatamente isso o que eu não quero."
Em vez de uma experiência de ação impensada, Martin acha que interpretação requer uma abordagem mais sofisticada, não muito diferente da que ele assume em seu grupo de jogo. Ao ser perguntado o que é necessário para ser um grande jogador, ele diz, "Eu acho que esperteza, imaginação e habilidade de interpretar seu personagem."
Como isso difere das qualidades necessárias para ser um grande escritor?
Ele responde, "Talvez em nada."

GEORGE R.R. MARTIN FALA SOBRE JOGAR VS. LER
"Para ter uma ótima experiência de jogo, você precisa de um grupo de ótimos jogadores e um bom mestre e um bom sistema, assim como para um filme você precisa de um bom roteiro e um bom diretor e alguns bons atores. Todos os elementos tem que funcionar bem juntos. Mesmo um ou dois elementos ruins podem fazer com que a mistura não fique boa, e você acaba não tendo uma experiência tão ótima. Ler é um ato muito mais solitário: é o autor interagindo com o leitor. Eu acho que provavelmente fornece uma experiência mais profunda, porque, baseado em minha experiência em Hollywood, a colaboração pode ser legal, e você pode ganhar algumas coisas com isso, você pode trocar algumas ideias, mas no fim, em qualquer arte colaborativa, há um processo de aceitação que ocorre. Você quer X; ele quer Y; vocês decidem por algo intermediário. Ou é isso ou você tem um conflito de poder, que é sempre ruim. Você não tem esse tipo de pureza de visão que se tem quando um autor está no comando de tudo. Então eu gosto de dizer a respeito de meus livros, eu sou o roteirista, mas também sou o diretor, eu sou todos os atores, eu sou o cara dos efeitos especiais, eu sou o desenhista de cenários, eu sou tudo.  Eu estou te dando a experiência completa. Eu não estou só escrevendo um diagrama como um roteiro e dependendo de outras pessoas para preencher essas lacunas."

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Nada mais importa


So close, no matter how far
Couldn't be much more from the heart
Forever trusting who we are
And nothing else matters

Never opened myself this way
Life is ours, we live it our way
All these words I don't just say
And nothing else matters

Trust I seek, and I find in you
Every day for us something new
Open mind for a different view
And nothing else matters

[...]

Never care for what they say
Never care for games they play
Never care for what they do
Never care for what they know
And I know [1]

     Quantas interpretações uma música pode ter? Como uma canção que foi criada como uma declaração para uma namorada é virada do avesso e se transforma em uma auto-afirmação sobre a busca por algo que não existe? Mais uma vez, uma janela do passado se acende e me atrai por uns instantes, me trazendo uma reflexão de quase 20 anos passados. Quantos mistérios o mundo tinha. Quantas descobertas, só esperando por mim. Havia sempre algo por trás de todos os elementos: as pessoas, os lugares, as histórias contadas; inúmeros segredos que eu poderia trazer à luz se eu me dedicasse a eles. A música acima foi o pano de fundo dessa época da minha vida. Uma época em que eu comecei a fazer mais perguntas, a correr atrás dos fatos, interrogar estranhos, buscar livros e mais livros, me esforçar para enxergar o que algumas pessoas diziam ver. E agora eu me pergunto se ganhei algo com isso. Obtive como resultado um conjunto de falhas que causou uma perda irreversível dos mistérios do mundo. Poderia isso ser uma vantagem, uma compreensão da realidade que impede a existência do desconhecido da forma como eu sonhava? É difícil responder a essa pergunta, principalmente porque a resposta pende para o lado negativo. O preço pela verdade pode ter sido alto demais.
     Descrever a trajetória completa dessa busca preencheria linhas demais, então vou me ater somente à época em que essa canção surgiu. Na falta de dados precisos sobre a data, posso dizer apenas que foi no final da minha adolescência, algo entre 1999 e 2000. O incentivo a querer saber mais veio de fontes diferentes e até mesmo despropositais. Uma delas, e talvez a mais importante, foi a insistência de minha família em me impor o espiritismo como religião.
     Os conflitos que tivemos e a dificuldade de me livrar disso não vem ao caso aqui, mas vale dizer que na época eram comuns cultos espíritas em minha casa e que minha presença era indiscutivelmente obrigada. Os ensinamentos e a doutrina nunca me desceram bem, assim como a ritualística e as preces. Mas o espiritismo tinha um lado extremamente atraente: os espíritos em si. Os médiuns afirmavam ver, ouvir, sentir e até incorporar espíritos dos mortos. Isso era legal demais pra ser ignorado!
     Quando eu sentia medo, sozinho no escuro, eu via vultos e ouvia ruídos, e não conseguia dormir. LÓGICO que eram fantasmas. Lógico que eles esperavam eu ficar sozinho pra vir me assustar. E esperavam ficar escuro. Luz acesa e companhia? Nem sinal deles. Assim foi minha vida durante muitos anos. De acordo com a visão espírita, isso era mediunidade. Eu podia perceber a presença deles, mesmo que só um pouco. Se nessas horas eu era capaz de percebê-los, por que não em outras? Por que não durante os cultos, onde estava todo mundo reunido com a luz acesa? Esse seria o momento mais propício, certo? Afinal, era um momento para eles nos visitarem e fluidificarem a água deixada ali. Eu nunca aticei meus sentidos tanto quanto durante os cultos. Eu mal piscava. As preces eram feitas, as leituras dos livros, mas não era ali que minha atenção estava. Era em volta. Era na porta de vidro do quintal. No canto das paredes. Atrás do sofá. No teto! Se algum deles resolvesse aparecer, não ia passar desapercebido por mim. Eu fitava até o rosto dos meus familiares, considerando a possibilidade de incorporação de algum deles.
     Acredito que, inconscientemente, eu inventava desculpas para não ter êxito. Eles eram bons em não aparecer. Eles tinham algum propósito secreto para não aparecer. Minha mediunidade precisava ser desenvolvida. E eu acabava achando que só iria ser capaz de presenciar os espíritos que apareciam para assombrar. E só na hora que eles quisessem. Só no escuro, quando eu estivesse sozinho. Apesar disso, as falhas sucessivas não me fizeram parar de tentar.
     A influência espírita foi além dos cultos em casa. Cheguei a comprar alguns livros a respeito, um sobre espiritismo no geral e um mais específico sobre a brincadeira do copo. "Copos que andam". Qual adolescente curioso não iria querer ler esse livro? O espiritismo como religião realmente não me interessava, mas eles pareciam saber tanto sobre espíritos. E eu queria tanto acreditar neles.
     Esse, portanto, foi o grande objeto do meu interesse: como eram, exatamente, os espíritos? Como eles interagiam com o mundo dos vivos? E com essas perguntas em mente, minha atenção estava extremamente voltada para esse assunto. Toda casa abandonada era assombrada. Todo cemitério era repleto de fantasmas. Toda família era visitada por parentes mortos. Os inúmeros filmes de fantasma assistidos na época também me tornaram um especialista no assunto. Um dia alguém iria encontrar algo concreto sobre eles, e esse alguém poderia ser eu.
     O espiritismo também trouxe mais dois elementos esotéricos à minha atenção: a reencarnação e o significado dos sonhos. Levando em conta tudo o que eu já disse até agora, parece desnecessário dizer o quanto esses dois assuntos também me atraíam. A ideia de recuperar memórias vindas de uma outra vida, vivida em outra época e talvez outro lugar, era fantástica. E cogitar viver experiências fora do corpo durante os sonhos parecia igualmente empolgante. O caldeirão do sobrenatural que fervilhava em minha mente já estava bem cheio, transbordando, na verdade.
     Um segundo fator influenciante foram minhas amizades. Dois de meus amigos cursavam psicologia e, na época, estavam extremamente decididos a seguir a área da parapsicologia. Mesmo eu tendo decidido seguir uma área diferente, eu fazia parte dos planos deles de montar um escritório de investigação paranormal. Enquanto muita gente da minha idade estava se matando de beber em festas, alguns até preocupados com gravidez e pensão, eu estava ali planejando ser um Caça-Fantasmas da vida real. Assim foi minha adolescência.
     Os dois amigos do "escritório de parapsicologia" não foram os únicos que compartilhavam meus interesses. Eu estava fazendo novas amizades com gente que também era extremamente curiosa com o sobrenatural. Pessoas aproximadamente da minha idade que tinham sua própria bagagem de leitura e casos ouvidos durante a vida, sobre experiências inexplicáveis e teorias antigas sobre o que não conhecemos a fundo. Era mais incentivo ainda de ler a respeito, de testar, de tornar os debates uma parte constante dos nossos dias. Até mesmo os membros do nosso círculo de amigos que não demonstravam tanto interesse nessa busca por respostas se reuniam conosco à noite, na frente do computador, com as luzes apagadas, para a leitura de histórias de fantasmas de sites hoje extintos. Tenho certeza que eles se lembram até hoje das principais histórias lidas e da música de fundo horripilante do site.
     O que até então havia sido uma obsessão pessoal passou a ser um hobby compartilhado. Eu via meus amigos se aprofundando nos assuntos e fazendo planos para o futuro e sentia que havia algo promissor aí. Que em grupo, talvez, nós fôssemos capazes de ver algo, de descobrir algo, de provar algo. Foi uma época de nossas vidas em que estávamos em total sintonia em relação a esses objetivos.
     Como amadores que éramos, em vez de nos inspirarmos em pessoas reais que faziam um trabalho semelhante na busca pelo sobrenatural, nós buscávamos nossos modelos na ficção. Líamos os mesmos livros, os mesmos quadrinhos, jogávamos os mesmos jogos e assistíamos os mesmos filmes e séries. Não posso dizer por eles, mas uma das séries que assistíamos acabou se revelando um grande reflexo do que eu vivia internamente. Uma série que trazia duas frases bem próximas do que eu sentia: "A verdade está por aí." (traduzido erroneamente e eternamente como "A verdade está LÁ FORA.") e "Eu quero acreditar."
     A série mostrava o empenho de um homem em buscar a verdade sobre visitas alienígenas à Terra e sobre o destino de sua irmã raptada, em meio a diversos casos sobrenaturais que fermentaram nossa imaginação durante anos. Mas o principal era a obsessão do agente em investigar e revelar algo para o mundo, além de para si mesmo. Sua primeira teoria em cada caso era sempre uma explicação cientificamente inviável, e ele quase nunca esteve errado. E o que eu fazia também era isso, eu sempre procurava projetar uma explicação sobrenatural em qualquer situação ainda não explicada. E era tão obcecado quanto ele em descobrir algo concreto.
     Agora, com todos os elementos devidamente apresentados, posso finalmente retomar o surgimento da canção-título em minha vida, esclarecendo como ela se encaixa, ainda que de uma forma distorcida, com todos esses tópicos.
     Fazendo parte de um grupo com os mesmos interesses, nós estávamos bem determinados a agir ativamente e começar a investigar, mesmo que informalmente. A oportunidade surgiu quando um amigo me convidou pra visitar sua família, em uma cidade pequena bem próximo de onde morávamos. Eu já havia ido lá com ele antes, assim como todos os nossos amigos, em ocasiões de férias e festas. Mas, dessa vez, nós iríamos com um propósito mais definitivo: perguntar e investigar sobre uma morte ocorrida na cachoeira onde costumávamos ir.
     Para não criar expectativas falsas, devo adiantar que este não é o tipo de história em que adolescentes bancando de investigadores acabam descobrindo alguma coisa importante. Não. Não descobrimos nada. Nem sobre a morte, nem sobre as bonecas que andavam sozinhas que também fomos investigar. Pois, como eu disse bem no começo, foi um caminho repleto de falhas e sem respostas conclusivas. Se houve algo estranho a respeito da morte do indivíduo (que eu nem nunca soube quem era), não ficamos sabendo. Mas fomos lá e tentamos, com toda a seriedade do mundo. Como se estivéssemos dando os primeiros passos de uma futura carreira. Um de muitos sonhos que ficou para trás.
     Nossa "base de operações", desta vez, foi uma casa vazia, que pertencia à tia de meu amigo e cujos inquilinos haviam acabado de desocupar. O único móvel era uma geladeira. Cada um de nós se apossou de um quarto e jogou seu colchão no chão. Havia mais amigos conosco ali, a maioria que havia ido apenas para aproveitar as festas da época na cidade, e todos ficaram nesta mesma casa. Um deles havia levado um CD com a música em questão, e foi ouvindo-a ali que eu realmente tomei gosto, tanto pela música quanto pela banda.
     O ambiente diferente já estava exercendo sua influência sobre mim. Era uma casa sem móveis, numa rua isolada, numa cidade pequena, até então cheia de segredos, e eu estava ali pra tentar descobri-los, com a ajuda de pelo menos um de meus amigos. E enquanto a música tocava, inconscientemente, eu associava alguns versos com o que eu estava vivendo.
     "So close, no matter how far" era sobre as respostas que eu queria. Cada passo que eu dava parecia ser o passo definitivo para encontrar alguma coisa. Às vezes, a falta de sucesso acabava me fazendo inverter a frase e dizer pra mim mesmo "So far, no matter how close". "Couldn't be much more from the heart", porque era algo que vinha de dentro mesmo, algo que me motivava a viajar e conversar com estranhos e tentar descobrir o que quer que fosse. "Forever trusting who we are" reforçava a ideia de grupo que tínhamos e "And nothing else matters" era um resumo de tudo isso.
     Sobre o próximo verso, sou obrigado a admitir que a associação foi pura culpa da minha interpretação errada do inglês. No lugar de "Trust I seek, and I find in you", o que eu acabei ouvindo foi uma frase sem sentido que soava como "Trust I seek that I'm finding you" e eu interpretava isso algo como "Tenho confiança que vou procurar e encontrar você", "você" sendo uma resposta, a verdade. Quando eu percebi, a música já estava em minha cabeça com um significado totalmente voltado para o que eu estava pensando. Totalmente diferente do que era para ela ser. Acredito que somente uma pessoa que nunca havia se envolvido sentimentalmente, como era o meu caso, poderia ter interpretado uma declaração de amor de uma forma tão distante assim.
     E hoje, ouvindo novamente essa música, eu me recordo de todos os elementos envolvidos. A casa, o propósito da viagem, o empenho e a expectativa em descobrir algo, as reflexões sobre as respostas inconclusivas das pessoas com quem falei, tudo isso é algo que não vai mais se repetir. Não dessa forma.
     Hoje, os conceitos são outros, a visão crítica é outra, a expectativa é completamente diferente. Ainda acredito em segredos escondidos, mas sobre coisas muito mais mundanas. Coisas erradas que as pessoas fazem em vez de fantasmas ou criaturas sobrenaturais entre as sombras. Explicações cientificamente plausíveis em vez de teorias fantasiosas. Nunca achei que eu fosse deixar de ser um Mulder e me tornar uma Scully. Mas foi inevitável. Não só com os assuntos apresentados aqui, mas com muitos, muitos outros que não foram abordados aqui também, devido à minha imersão cada vez mais profunda nas pesquisas. Não há uma verdade por aí esperando para ser descoberta. Pelo menos, não uma verdade sobrenatural. Eu quero acreditar, mas fica cada vez mais difícil. Considerando os grandes mistérios do mundo, acho até que não sobrou mais nada em que eu ainda queira acreditar.
     E a dúvida permanece: valeu a pena?

[1] Tão perto, não importa o quão longe
Não poderia ser muito mais do que isso vindo do coração
Para sempre confiando em quem somos
E nada mais importa

Nunca me abri dessa forma
A vida é nossa, vivemos do nosso jeito
Todas essas palavras que eu simplesmente não digo
E nada mais importa

Confiança eu busco, e encontro em você
Todo dia algo novo para nós
Mente aberta para uma visão diferente
E nada mais importa

[...]

Nunca ligo para o que eles dizem
Nunca ligo para jogos que eles jogam
Nunca ligo para o que eles fazem
Nunca ligo para o que eles sabem
E eu sei

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Crônicas da Espada

Uma história informal da ficção de espada-e-feitiçaria

Por Lin Carter



Capítulo 1 - Reinos da Aurora

   Qualquer história da ficção de espada-e-feitiçaria é inevitavelmente tentada a começar com Robert E. Howard, pois ele foi o primeiro escritar a cristalizar os elementos da fantasia heróica em uma forma distinta, facilmente reconhecível, algo novo e empolgante.
   Mas as raízes de espada-e-feitiçaria datam de uma época bem antes de os primeiros fios da meada no gênero da fantasia heróica aparecerem nas lendárias páginas de Weird Tales, no sentido de que datam do início da própria literatura, pois o indômito herói guerreiro no estilo Conan que vaga pelo mundo pré-histórico enfrentando dragões e demônios, monstros e magos, tem seu protótipo em São Jorge e Sigfried, em Beowulf e Hércules. Uma parte mais intrínseca das tradições de literatura moderna de fantasia, porém, são as fábulas morosas e belamente trabalhadas escritas por Lorde Dunsany, soldado Normando-Irlandês, poeta, esportista, dramaturgo e viajante. O primeiro livro de Lorde Dunsany sobre estas fábulas, Os Deuses de Pegana, apareceu em 1905; entre esta data e 1915, ele publicou oito estreitas coleções de fantasia, que são, com várias remoções, as progenitoras diretas das histórias heróicas Howardianas.
   Os contos de Dunsany originaram-se a partir das histórias fabulosas da Grécia e de Roma, tais como os contos de viajantes de Heródoto e Plínio, cruzadas com a paternidade de As Mil e Uma Noites dos contos orientais, com uma certa mistura de lendas e épicos heróicos medievais. Muitas dessas raízes são, sem dúvida, muito oníricas e idílicas para terem influenciado a espada-e-feitiçaria em um sentido que não seja periférico. Outras convergem mais de perto no estilo Howardiano. Um bom exemplo disto é "A Fortaleza Invencível, Exceto por Sacnoth", em A Espada de Welleran (1908), no qual o herói Leothric mata o dragão Tharagavverug e forja a espada encantada Sacnoth a partir de seus ossos indestrutíveis, para com eles matar o mago maligno Gaznak. Um outro bom exemplo pode ser visto em "O Tesouro dos Gibbelins", um conto do Livro das Maravilhas (1912), no qual o cavaleiro Alderic tenta opor-se aos devoradores de homens Gibbelins e acaba em um final infeliz.
   Os pequenos contos de Lorde Dunsany sobre reinos fabulosos e distantes "na Beira do Mundo," que se encontram em terras "além dos Campos que Conhecemos", são obras-primas inigualáveis de pura fantasia. Uma coleção destes oito estreitos livros forma a fundação indispensável de qualquer biblioteca de fantasia; podem ser relidos infinitamente, o especialista se encontra retornando a eles de novo e novo ao longo dos anos.

   H.P. Lovecraft foi um grande admirador do fabulário de Dunsany. Mesmo antes de ter a empolgante emoção de ouvir Lorde Dunsany ler seus trabalhos em Boston durante uma de suas turnês americanas, o mestre do macabro já estava experimentando formas narrativas e estilística de prosa praticamente idênticas. O impacto de ver e ouvir Dunsany pessoalmente fez com que Lovecraft entrasse precipitadamente em um período de criação de ficção puramente Dunsanyana, uma era que começou em 1919 e terminou em 1926 com um romance abandonado chamado A Busca Onírica pela Desconhecida Kadath. Durante este período de oito anos, Lovecraft produziu um corpo considerável de obras, muitas das quais mostram claramente a influência que Dunsany teve em suas tramas, personagens, cenários e estilo de prosa. "Polaris," "A Perdição que Veio a Sarnath", "O Navio Branco", "Os Gatos de Ulthar", "Celephais" - conto após conto jorravam dele. Hoje ele é muito mais conhecido por suas histórias posteriores dos Mitos de Cthulhu; o ciclo anterior das Terras Oníricas, porém, ainda tem seus admiradores, e eu entre eles.
   Logo depois, Lovecraft fez sua primeira venda ("Dagon") para uma revista pulp recém-lançada chamada Weird Tales. Sua primeira história nesta, que era a maior das pulps, apareceu no primeiro ano da revista, 1923. Sua popularidade cresceu bem rápido entre os leitores da Weird Tales até que por fim ele se tornou unicamente o mais popular dos escritores que contribuíram com a revista. (Ainda publicada hoje, nenhum escritor da Weird Tales em seu meio século de existência removeu-o de seu trono.)
   Começando em agosto de 1922, Lovecraft começou a corresponder-se com o recluso artista, poeta, escultor, tradutor e escritor de ficção da Califórnia, Clark Ashton Smith, no qual ele descobriu um espírito semelhante. Lovecraft implorou para que o editor da Weird Tales solicitasse algum trabalho de Smith, e com a edição datada de agosto de 1928, Smith começou a aparecer nas páginas desta revista.
   Lovecraft era então um proselitizador: ele adorava incentivar seus livros e escritores favoritos para seus correspondentes, como é provado por suas cartas publicadas. Se Smith já não tivesse descoberto Dunsany por si mesmo antes que sua amizade com Lovecraft começasse, ele teria descoberto seu caminho até ele através das recomendações entusiasmadas de Lovecraft. A primeira história de Smith na Weird Tales foi "O Nono Esqueleto", publicada em setembro de 1928. Este primeiro conto, e os que o seguiram, não mostravam influência Dunsanyana, nem mesmo de Lovecraft. Mas com "O Último Encantamento", na edição de junho de 1930, a dupla influência começou a se mostrar.
   Este foi o primeiro ciclo de histórias de Smith que se passava em Poseidonis - "a última ilha da Atlântida submersa" - e foi rapidamente sucedida por "O Conto de Satampra Zeiros", a primeira de várias histórias passadas no continente pré-histórico de Hiperbórea, e "O Império dos Necromantes", situada no continente do futuro longínquo de Zothique.
   Lovecraft ficara fascinado com a invenção literária de Lorde Dunsany de criar um ambiente imaginário para seus contos fantásticos. Quando o autor cria completamente a geografia e história dos reinos nos quais suas histórias se passam, ele tem uma liberdade imaginativa maior do que teria se estivesse confinado a cenários puramente históricos. Smith percebeu isso instantaneamente, e voltou-se para Atlântida e Hiperbórea e outros países imaginários, que os ocultistas supunham que tivessem dado origem a civilizações pré-históricas na era da aurora, muito antes dos princípios da história.
   Suas histórias são diferentes do ciclo Dunsanyano de Lovecraft por serem mais aventurosas, mais preocupadas com heróis em buscas, como o jovem guerreiro Tiglari em "O Labirinto de Maal Dweb", o ousado e malicioso Satampra Zeiros, ou o valoroso Ralibar Vooz, cuja busca é detalhada em "As Sete Maldições". A linhagem literária de descendência destas histórias, de Dunsany a Smith, e também de Dunsany a Lovecraft e a Smith, pode ser facilmente traçada nos nomes inventados nestas histórias, que recordam sem dúvida dos nomes caracteristicamente Dunsanyanos.

   A invenção de mundos imaginários é um complicado problema de artesanato. Por um lado, é mais fácil criar o cenários de suas histórias do que usar locais historicamente familiares, como a Babilônia ou o Egito, porque fazer isso não requer pesquisas cansativas. Por outro lado, certas dificuldades se apresentam: o leitor vem até uma aventura histórica que se passa no antigo Egito, ou em outro lugar, já equipado com um conhecimento e informação consideráveis sobre o período, adquiridos através de sua leitura de histórias semelhantes. Mas um leitor visitando a Lomar ou Sarnath de Lovecraft, ou a Zothique ou a Hiperbórea ou a Xicearph de Smith, não sabe nada destes mundos exceto o que seus criadores se importaram em passar para ele.
   A tentação acaba sendo passar bem pouca informação (como nas histórias de Elric de Michael Moorcock, que meio que flutuam livres no tempo e espaço, sem uma âncora narrativa para prendê-las firmemente à Terra Cognita, aos Campos que Conhecemos), ou apresentar ao leitor bem mais informação do que ele precisa ou quer (como, por exemplo, no recente romance de Philip José Farmer, Hadon da Antiga Opar; ou, até mesmo, O Senhor dos Anéis, que lida bastante com calendários, alfabetos, mapas, genealogias, e outras informações de cenário essencialmente supérfluas).
   Ao escolher algo bem próximo da fábula ou lenda ou conto de fadas, como Dunsany fez, bem poucos detalhes de cenário são necessários ou desejados. Afinal, "Aladdin e a Lâmpada Maravilhosa" não nos dá informações históricas sobre as dinastias da China, e "Sindbad, o Marinheiro" dispensa completamente os mapas das sete viagens.
   Quando Lovecraft voltou-se para a criação dos reinos de fantasia Dunsanyanos, ele trabalhou próximo ao estilo e padrão das lendas e mitos. Clark Ashton Smith, por outro lado, estava escrevendo algo muito parecido com as histórias atuais, com pessoas reconhecidamente reais tentando lidar com perigos e problemas reais, dando um passo para diferenciar-se do fabuloso. Uma tentativa é feita para ancorar as histórias na realidade. É possível, por exemplo, organizar os contos de Smith sobre Zothique ou Atlântida ou Hiperbórea em ordem cronológica baseado em evidência interna, algo que não pode ser feito com Lovecraft, nem, como vem ao caso (exceto aqui ou ali) com Dunsany.

   Quando Robert E. Howard (1906-1936) chegou na cena, ele trouxe um sentido de realismo muito mais forte para seus cenários do que qualquer de seus precursores havia feito. Eles tomavam uma visão romântica da pré-história, enquanto ele era sinistramente - até mesmo amargamente - realista. Os personagens em Smith e Lovecraft encontram-se com sinas irônicas ou poeticamente justas, e encontram-nas com graça. O mesmo não acontece com Howard! Suas histórias fedem a sangue e sujeira e suor; Conan pode ser maior que a própria vida, mas ele não é um herói onírico partindo em buscas de idealismo romântico. Ele é um mercenário sombrio, lutando por pagamento, aventurando-se porque precisa, esforçando-se para manter-se vivo em um mundo lindo e bárbaro onde as pessoas se machucam e até mesmo heróis podem ser derrotados e tudo não necessariamente termina bem no final.
   Howard, um truculento e musculoso texano, vendeu sua primeira história para a Weird Tales quando tinha quinze anos. Esta história era chamada "Lança e Canino", e apareceu na edição datada de julho de 1925. Era um conto sobre homens das cavernas, e ele o seguiu com "Cabeça de Lobo" no ano seguinte, um tipo de capa-e-espada histórico do tipo que geralmente associamos com Rafael Sabatini.
   Howard havia sido nutrido por Burroughs e Haggard e Mundy e Rohmer, pelos contos cossacos de Harold Lambs e os romances de Robert W. Chambers sobre as guerras da França e dos índios do estado de Nova York. Ele realmente pertencia às páginas da Argosy, e queria mesmo escrever contos históricos. Mas descobriu que era impossível lançar isso no mercado. Um dos motivos era que ele estava em competição direta por espaço nas páginas da Argosy com todos aqueles autores mais velhos e bem mais celebrados, sem contar Jack London e James Oliver Curwood.
   Portanto, ele fixou seu olhar na Weird Tales e começou a vender-lhes histórias de altas aventuras com apenas o suficiente de incidentes sobrenaturais ou magia negra para torná-las qualificáveis para o que era, afinal de contas, uma revista de fantasia estranha.
   Smith, Howard e Lovecraft, os três maiores de todos os regulares da Weird Tales, conheciam um ao outro, eram bons amigos e correspondentes constantes, e tinham o agradável hábito de ler as histórias um do outro em manuscrito - algumas vezes, anos antes de tais histórias realmente chegarem a ser impressas. Isto torna tanto fácil quanto difícil apontar exemplos de influência entre eles, porque, enquanto podemos facilmente concluir que as histórias de Howard sobre o Rei Kull foram influenciadas pelos próprios contos de Atlântida de Smith, não podemos provar pelas datas, já que tudo o que temos são as datas das publicações.
   Porém, em 1929, Howard vendeu sua primeira história de um novo ramo para a Weird Tales. Era chamada "O Reino das Sombras", e apresentou em forma impressa pela primeira vez um selvagem andarilho atlante chamado Kull.
   E o gênero chamado espada-e-feitiçaria nasceu...

A seguir: Um Rei Chamado Kull.