quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Segunda Chance





Daniel sentou-se no chão, encostado na parede, coberto de suor.  A arma tremia em sua mão e ele encostou-a rapidamente em sua cabeça. Se ela disparar por acidente, que não acerte o alvo errado. Ofegante, ele repassava os últimos momentos em sua cabeça, para evitar que mudasse de ideia. A despedida da namorada, o desprezo dos pais, a falta de reconhecimento por seu trabalho. É, não restava mais nada mesmo. Além do mais, a morte trará fama. Pelo menos havia sido assim com tantos outros pintores antes dele.
Após respirar fundo pela última vez, ele fechou os olhos e apertou o gatilho.
O vazio que se seguiu era indescritível. Nada de dor, sofrimento, sentimentos ruins, nada. E então uma batida. Mais uma. Era o seu coração, ainda batia forte, como se ignorasse o que acabara de acontecer. Lentamente, Daniel abriu um olho e, enquanto reconhecia o quarto onde estava, notou que estava sentado na mesma posição, com a arma ainda encostada em sua cabeça. Mas bem na sua frente havia um homem.
Seria difícil tentar descrevê-lo. Suas feições não tinham nada de memorável. Sem barba, sem bigode, cabelo curto, um homem comum com roupas comuns. “Daniel?” ele disse. “Pode me ouvir?”
Completamente perdido, Daniel deixou o braço cair devagar, tirando sua cabeça da mira da arma. O Homem tornou a abordá-lo. “Está tudo bem. Eu vim para lhe mostrar algo.” Estendendo a mão, ele fez sua oferta. “Venha comigo.”
Tremendo mais que um pinto, Daniel aceitou a mão estendida e levantou-se. Percebeu que o Homem era pouca coisa mais alto que ele. “Vamos dar um passeio. Aproveite, pois ninguém poderá nos ver.”
No instante seguinte, o quarto em que eles se encontravam já era outro. Um quarto de garota, com toda a decoração que se espera encontrar em tal lugar. Deitada na cama, agarrada em um jacaré de pelúcia, a Namorada chorava ao telefone. “Eu não queria que fosse assim, mas ele tava achando que eu tava à disposição dele. Que eu vivia por conta dele. Daí eu tinha que fazer isso pra ele abrir o olho. Mas dói tanto. Eu não consigo parar de pensar em como ele deve tá se sentindo agora... é, é o que eu espero.” O choramingo foi interrompido por uma leve risada. “Já tô imaginando como vai ser quando a gente voltar.”
Tomado de assombro, Daniel olhou para o Homem, que apenas sorriu para ele com afeição. “Ainda há mais para ser visto.”
Quando olhou de volta para a cama, o quarto já não era mais quarto. Agora era a cozinha de casa, com o Pai e a Mãe sentados à mesa. E a Mãe dizia: “Acho que você pegou pesado com ele dessa vez. Tudo bem que ele não tem andado na linha, mas... você sabe como ele se deixa levar pelo que ouve. E parece que ele ainda se desentendeu com essa namorada nova. Isso me preocupa.” “É... tá certo. Vou lá falar com ele. Tentar explicar que a gente só quer o bem dele.”
Fazendo jus à sua descrição dada pela Mãe, Daniel chorou. E desejou que eles o vissem agora, que falassem com ele ali, naquele instante. Mas alguém segurou-lhe pelo ombro, e virando-se, ele viu o Homem, ainda sorrindo. “Ainda não terminamos.”
A geladeira, a pia e a mesa deram lugar a um conjunto de cavaletes exibindo suas pinturas. Uma senhora examinava atentamente um dos quadros, o Aposentado. Após alguns instantes de observação, ela suspirou e deixou cair uma lágrima. Recompondo-se, procurou o responsável pela exibição.
Daniel, de olhos arregalados, agarrou os braços do Homem e gritou: “Eu entendi! Eu entendi! Agora eu vi tudo o que eu tenho e não sabia. Pode me levar de volta. Eu não vou mais apertar o gatilho.”
E então ele estava de volta, sentado no chão do quarto, suando feito um porco, com a arma na cabeça. E o Homem estava à sua frente. “Além de cego, você é tolo, Daniel. Tudo o que eu lhe mostrei não foi para fazer você mudar de ideia. Foi para que você soubesse o que perdeu. Você já puxou o gatilho.”
E então toda a dor e o sofrimento que ele esperara antes vieram de uma só vez, em uma fração de segundo que, para ele, durou uma eternidade.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Além da Fronteira da Névoa


            A lua cheia iluminava a velha estrada que rumava da pacata cidade de Karg à capital de Darkon, Il Aluk. E nesta estrada, ignorando os perigos da noite, caminhava uma figura solitária. Suas botas, gastas e sujas, atingiam o chão silenciosamente à medida em que ele avançava pela estrada. Os restos de sua capa rasgada balançavam com o vento, e seu rosto se encontrava totalmente coberto por um capuz, deixando à mostra apenas os longos cabelos loiros. O medo da noite havia abandonado o viajante, que lutava com muitas perguntas e poucas respostas em sua mente. O cheiro do mato trazido pelo vento o remetia a antigas memórias de uma terra distante e fazia renascer em seu coração o medo de nunca vê-la novamente.
"Dois anos", ele pensava, "dois anos longe de minha terra, de minha gente, e de tudo que foi feito pelos deuses, abandonado em um reino sombrio nos confins do mundo." O cheiro que vinha dos bosques à beira da estrada o fazia lembrar das florestas de seu lar, mas havia algo de diferente no aroma destes bosques. Uma leve fragrância que diferenciava estas árvores das árvores de Cormanthor, onde ele havia nascido e crescido, apesar de serem aparentemente as mesmas árvores. Era um odor de maldade, de perversão. Estas eram as únicas coisas que ele podia associar ao que cheirava.
Ele sabia dos perigos que espreitavam por estes bosques, mas havia aprendido a lidar com eles. As feras da floresta não representavam mais perigo, uma vez que ele aprendeu como acalmá-las, e a única coisa com que ele se preocupava era com os filhos da noite. Assim eram chamadas as criaturas que vagavam pelas ruas e estradas após o pôr-do-sol, e que povoavam os pesadelos do povo de Darkon. Ninguém sabia muito sobre sua natureza, e as lendas populares apenas ajudavam a manter o mistério em torno de tais seres. "Vampiros", alguns diziam, e "lobisomens", outros acreditavam, mas o que importava para o simples povo de Darkon não era o nome dos seres, e sim, o medo que eles traziam às cidades. Não era raro um corpo ser encontrado pela manhã, morto sem razão aparente. Simplesmente privado do direito de viver, sem marcas, ferimentos, ou sinais de doença. Apenas morto. Os físicos e estudiosos diziam que estes pobres infelizes sofriam do coração, mas eram desmentidos pelas famílias dos falecidos. E cada novo caso sem explicação contribuía para aumentar o medo e a superstição.
Subitamente, um ruído no mato chamou a atenção do andarilho e o fez esquecer momentaneamente seus pensamentos. Havia alguma coisa naqueles arbustos, ele tinha certeza. E não era um animal, pelo tamanho do vulto que ele avistou. Ele cerrou um pouco os olhos para ver melhor, e algo o surpreendeu, fazendo seu coração parar por um instante, como se algo estivesse errado. Ele notou que o bosque estava em silêncio à volta daquela figura, pois ele era do povo dos elfos, e possuía o dom de perceber melhor os sons à sua volta. E ele percebeu que os únicos sons vindos do bosque estavam distantes do vulto, até mesmo os insetos noturnos que não fogem à presença de outros seres maiores.
O brilho da lua refletiu-se na espada desembainhada enquanto ele se aproximava dos arbustos, olhando atentamente na direção do vulto. Ele então conseguiu visualizar os olhos daquela criatura, que tinha a forma de um homem, mas andava curvada e arrastando-se, porém, de uma forma rápida, que não combinava com seus movimentos. Os olhos eram amarelos como os olhos de um lobo, e estavam olhando em sua direção. Naquele momento, o elfo se conscientizou sobre a natureza daquele ser. Ele tinha a certeza de que não era algo vivo, mas também não estava morto. Morto-vivo. A descoberta fez o sangue em suas veias correr mais rápido, e ele deixou de lado todo o cuidado que estava tendo até aquele momento e adentrou o bosque impetuosamente.
A criatura não esperou a chegada do inimigo e saltou sobre ele como um animal. Neste momento, a luz da lua o atingiu, e o elfo pôde ver por um breve instante a aparência do morto-vivo. Seus cabelos eram escassos e havia feridas antigas por toda sua pele. Suas roupas eram trapos que pareciam estar ali apenas por não terem sido retiradas, não demonstrando nenhuma utilidade. Suas unhas haviam se tornado garras, e estas cortaram o capuz que cobria o rosto do guerreiro. Sua reação foi imediata: sua espada cortou o ar, e um dos braços podres caiu no chão, revelando um sangue escuro e malcheiroso. A criatura não demonstrou ter sentido o golpe, e teria continuado seu feroz ataque se a espada élfica não atacasse novamente. Desta vez, a cabeça semi-decomposta caiu ao chão, seguida do corpo.
O elfo ainda ficou por alguns instantes, parado em frente ao corpo decapitado, questionando-se sobre a criatura. Não era apenas um corpo animado, ele pensou. Este movia-se como uma fera selvagem, e havia expressão em seus olhos, o que ele nunca havia visto em um servo morto-vivo. Um outro barulho nas profundezas do bosque interrompeu suas conclusões: desta vez era um gemido, mais vívido, de alguém que ainda respirava. Ele correu instintivamente na direção do som, esperando encontrar alguém ferido pela criatura que ele havia derrotado.
Quando chegou ao local de origem do ruído, percebeu que estava certo. Caído ao pé de uma árvore, havia um homem caído de bruços, com uma espada quebrada ao seu lado. Suas roupas eram de qualidade, porém bastante sujas de terra e sangue, e os ferimentos em seus braços e costas podiam ser vistos claramente, ferimentos de mordidas e arranhões. O homem levantou um pouco sua cabeça e olhou na direção do elfo. Ele pareceu satisfeito com sua presença, demonstrando um esboço de sorriso de sua boca ensangüentada. O elfo se aproximou, e já se preparava para tratar de seus ferimentos, quando o homem ferido murmurou algumas palavras, interrompidas por engasgos e tosses:
-         Seu tolo... agh... é uma... emboscada...
O elfo levantou-se de um salto e começou a recuar a partir do lugar onde estava o homem caído, olhando rapidamente para todas as direções e procurando ouvir algo que o alertasse da presença de atacantes. Então ele percebeu movimentos em toda a sua volta. Ele estava cercado. Cerca de dez mortos-vivos semelhantes àquele que ele derrotara saíam das entradas sombrias do bosque e fitavam-no com olhares famintos. Por um breve momento ele pensou que este tipo de morto-vivo matava para alimentar-se. O sombrio grupo avançava em sua direção enquanto ele recuava, embainhando a espada e preparando o arco. Antes que eles pudessem dar dois passos, duas flechas voaram entre eles e acertaram dois deles, mas não foi o suficiente para derrubá-los. O elfo recuava sem olhar para onde estava indo, e acabou batendo suas costas em uma árvore. Antes de virar-se e contornar o tronco, ainda disparou uma última flecha, que acertou entre os olhos de um que já havia sido atingido, eliminando-o. Os outros passaram por cima do corpo do semelhante caído, sem demonstrar reação à sua segunda morte, e também contornaram a árvore, procurando por sua caça. Mas, do outro lado do tronco não havia nada.
Os mortos-vivos mostraram-se surpresos, procurando e farejando. Um deles, que estava mais próximo da árvore, levou um chute na nuca e caiu sobre a ponta de um galho quebrado numa árvore próxima. Ainda se mexia, mas estava preso ao galho. Os outros então viraram-se e viram o elfo saltando de um galho mais alto da árvore entre eles, acertando dois deles com sua espada e recuando do círculo de criaturas para melhor defender-se.
Enquanto recuava, fitando cada movimento de seus oponentes, uma luz brilhou atrás deles, atrapalhando um pouco sua visão noturna. Era o brilho de uma estrela, ou algo semelhante, que não devia estar ali. A luz fez os mortos-vivos olharem para trás na direção dela e, ao recebê-la em seus olhos, metade deles gritou e fugiu. A luz parecia mais forte, como se estivesse se aproximando, e começou a diminuir. O elfo então pôde perceber que ela provinha de um objeto na mão de alguém que já se encontrava a meros passos dos mortos-vivos. Quando o clarão cessou totalmente, ele conseguiu reconhecer a silhueta do homem que estava caído a alguns metros dali, agora de pé, e com uma maça em sua mão, pronto para combater as criaturas novamente.
Restavam apenas quatro delas agora. Os dois homens instintivamente tiveram a certeza de que estariam lutando do mesmo lado, pelo menos nesta luta. E isto os fortaleceu de alguma forma. Tendo a confiança de não estar lutando sozinhos, os dois rapidamente terminaram a semi-vida de seus inimigos. Mas, assim que o último deles tombou, o homem de ricas roupas caiu de joelhos, perdendo a firmeza em sua arma. O elfo logo estava ao seu lado, tentando de alguma forma ajudar o homem ferido. Ele apenas fez um sinal com a cabeça, liberando o elfo de tal responsabilidade, e disse:
-         É tarde demais. Permita que eu morra em paz.
-         Não... Você quis lutar com aquelas criaturas, mesmo à beira da morte... não merece morrer assim..
-         É inútil tentar me ajudar! Ouça o que estou lhe dizendo! A mordida deles era venenosa. E este veneno já fez seu efeito... Logo eu me tornarei um deles... Se quer fazer algo por mim, não me deixe ser privado de meu descanso eterno. Assim que meu coração bater pela última vez, eu já serei um deles. A não ser que meu corpo não esteja preservado...
-         O que você quer dizer com isso? Me diga pelo menos o que eles eram. Você parece saber mais do que eu sobre eles...
-         Carniçais... mortos-vivos... Trazidos de volta da morte pela gula e cobiça, pela vontade de querer sempre mais... e espalhando sua maldição entre suas vítimas... – O homem puxou sobre seu peito um símbolo sagrado religioso, representando um brasão com uma balança sobre um martelo.
-         O símbolo da ordem de Tyr... – aquilo deu ao elfo a certeza de que este homem sabia algo sobre sua terra natal – Você... de onde você é?
-         Uma vez eu fiz parte da ordem de Tyr em Cormyr... mas isso foi há muito tempo...
-         Meu nome é Gunthar. Nasci em Cormanthor e morei em Shadowdale por vários anos... até vir parar aqui...
Os olhos do homem pareceram acender-se novamente com a chama da vida. Ele havia acabado de receber, em seus últimos instantes de vida, uma nova esperança. – Você... você deve saber então... – ele retirou de um bolso duas jóias ovais brilhantes, uma vermelha e uma marrom. – Estas... estas são apenas uma parte de um todo. Se todas as sete jóias puderem ser encontradas e reunidas, elas revelarão um caminho para aquele que as possui... Eu não tive o tempo suficiente para encontrar todas elas, mas você terá... tome.
Gunthar tomou as pedras em sua mão, e naquele momento, ficou ciente da importância delas. Elas seriam agora seu tesouro, aquilo que ele protegeria a qualquer custo. Pois elas seriam sua passagem de volta para casa.
O homem segurou a mão do elfo e, em seus últimos suspiros, disse:
-         Eu já lhe dei algo de valor. Algo mais importante do que qualquer outra coisa que você possa encontrar nestas terras. Agora lhe peço que cumpra minha vontade. Não lhe considerarei meu carrasco por isso... mas meu salvador. Faça o que deve ser feito. Conceda- me meu descanso de direito...
-         Assim será feito. Sua ajuda foi maior do que você imagina. Adeus, amigo.
Gunthar levantou-se e ergueu sua espada com as duas mãos, esperando o momento certo, sem querer privar o homem de seus últimos segundos de vida. Ele então percebeu que não sabia o nome daquele que o ajudara nesta noite. Seus lábios moveram-se para fazer a pergunta, mas ele foi interrompido pelo súbito movimento do homem a seus pés: seus olhos estavam arregalados, mostrando a cor amarelada típica dos olhos das criaturas que eles acabaram de derrotar, e sua boca se arreganhava, revelando dentes afiados e totalmente diferentes do que haviam sido momentos antes.
A espada cortou o ar e atingiu o pescoço do homem, interrompendo seus gritos inumanos.
-         Está feito. Espero que ele tenha encontrado seu merecido descanso.
O elfo olhou mais uma vez para as pedras que havia recebido, e as imagens de seu lar enchiam sua mente. As árvores verdejantes, os rios, os animais inofensivos, a felicidade e a despreocupação no rosto das pessoas. Ele só precisava encontrar mais cinco jóias daquelas, onde quer que elas estivessem. Mas agora haveria algo mais para ajudá-lo: esperança. Um sinal de que ele não ficaria perdido nestas terras para sempre. De que ele veria seu lar novamente.


           Gunthar agora retomava a estrada. O sacerdote havia sido devidamente enterrado e uma oração a Tyr havia sido feita pelo elfo. Ele não era um seguidor de Tyr, mas lembrava-se de algumas orações para aquele Deus. A estrada parecia ligeiramente mais clara e mais segura agora. As preocupações pareciam ter se esvaído de sua mente, juntamente com seus medos. A única coisa com que ele se preocupava agora era chegar em Il Aluk, capital de Darkon, e iniciar sua procura pelas outras jóias. Ele havia ouvido falar sobre o Rei Azalin de Darkon, um poderoso mago, e imaginava se poderia conseguir alguma informação com este rei.
           Faltavam apenas cinco jóias.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

O Diário

O jovem psiquiatra adentrou lentamente o quarto de seu predecessor. Era direito seu fazer isso, mas, ainda assim, parecia-lhe uma invasão de privacidade, tantos eram os objetos pessoais deixados para trás, não havendo ninguém para herdá-los. Estava claro que levaria algum tempo de mudanças e faxinas até que o recinto se tornasse realmente seu quarto. Parece um dos melhores do Hospício, ele pensou, já que dali não se podia ouvir os ruídos incessantes dos internos do outro lado do pátio – um privilégio honestamente alcançado pelo falecido Dr. Corrêa.

Colocando a mala ao chão, ao lado da cama, o jovem sentou-se à mesa e pôs-se a escrever uma carta para casa. Após dar detalhes de sua viagem e chegada ao Rio de Janeiro, ele finalizou:

“O pagamento é realmente tudo aquilo que me disseram. Em apenas alguns meses, serei capaz de trazer-te para cá, junto com as meninas.

De teu filho querido,

Ernesto”

Foi apenas quando começou a dobrar o papel da carta para colocá-la no envelope que reparou no livro sobre o qual escrevera a mensagem. Um livro fino e pequeno, com capa de couro marrom, de um tipo muito comum para fazer anotações e registros. Após apropriar-se do quarto e do cargo, não seria um crime tão grande virar a primeira página de um livro que provavelmente continha anotações pessoais. E ele o fez.

“Aquele que caça monstros deve tomar cuidado para não tornar-se ele mesmo um monstro.”

A foto de um corpo mutilado não poderia tê-lo assustado mais do que a simples frase. Não eram apenas letras ajuntadas com um significado; cada caractere parecia uma expressão única de sofrimento, uma forma de livrar-se de um mal incurável, um garrancho com uma personalidade maligna. Eram dezenas de pequenos rostos de demônios chamando-o, impelindo-o a passar mais uma pámpelindo-o a passar mais uma pidadencurse. para n de um tipo muito comum para fazer anotaçgina, a arriscar-se num mundo de medos e de segredos. E a frase, ele sabia que já ouvira aquela frase antes, não fazia muito tempo. Uma citação, mas de quem? Um aviso? Para quem?

Percebendo que prendera a respiração enquanto olhava para a lúgubre página, Ernesto suspirou. Um breve olhar para a porta aberta confirmou-lhe que o corredor além estava vazio. Os outros quartos estavam em silêncio. Com passos trêmulos até a porta, ele fechou-a lentamente, com medo dos próprios sons, e olhou de volta para a mesa e para o curioso manuscrito que sobre ela se encontrava.

– Fecharei aquela coisa maldita e dormirei. – Ele pensou. – Amanhã é meu primeiro dia de trabalho e não posso perder tempo com tolices.

Uma hora passou-se e o sono não veio. Ernesto levantou-se da cama e retornou à mesa e ao livro.

* * *

No dia seguinte, após preparar um copo cheio de café quente, Ernesto se escorava na parede da sala de tratamento enquanto o Diretor lhe explicava a rotina do lugar. A maioria do que foi dito se perdeu em questão de segundos. Havia algo sobre oficinas para os internos, onde eles aprenderiam diversas funções de manufatura. Mas que deixe o velho falar. De que importava a rotina do Hospício agora? As páginas manuscritas passavam perante seus olhos novamente, em pleno ar. Nada mais existia.

“18 de janeiro de 1897.

Não sei ao certo porque decidi começar este diário, já que as únicas pessoas ao meu redor capazes de ler o que escrevo são as pessoas de quem escondo o que tenho descoberto. Ainda assim, mantenho esperanças de que um dia estas anotações caiam nas mãos de alguém que se importe, alguém de fora daqui, que ainda não tenha sido distorcido pelo mal que permeia este lugar.

Inicio meu relato comentando sobre o comportamento dos internos. Há uma grande tendência entre eles em acharem que não são loucos, como seria esperado. Porém, em muitos momentos, eles realmente parecem sãos. São capazes de estabelecer diálogos coerentes, sobre assuntos complexos. Não fossem os recorrentes casos de distúrbios de personalidade, eu mesmo emitiria um atestado de sua sanidade e lucidez.

Meus colegas, ao contrário, não são capazes de perceber estas nuances. Tratam-nos como qualquer interno em qualquer hospício. Talvez seja este o motivo pelo qual me excluem. Consideram-se os donos da verdade, apenas por estarem aqui há mais tempo que eu. Portanto, também evito conversar com eles a respeito dos fenômenos recentes que tenho observado. Pretendo descobrir a natureza destes fenômenos e temo que abordar este assunto com eles possa apenas dificultar minha meta.

Quando digo fenômenos, refiro-me a estranhos eventos que tenho presenciado nesta instituição. O primeiro fato ocorrido foi há cerca de um mês, enquanto eu passava próximo à escada que leva ao último andar do Hospício. O nítido som de uma risada chegou aos meus ouvidos, vindo do alto dos degraus. Foi uma risada abafada e logo contida por seu emissor, mas, ainda assim, capaz de ser ouvida. Desde que estou aqui, disseram-me que o último andar encontra-se em condições precárias, que o ar lá é impuro e que o piso precisa de reparos. Porém, mesmo com todas essas adversidades, alguém estava lá e, provavelmente, estava acompanhado. Não fui capaz de aquietar minha curiosidade. Aquele fato precisava de respostas. Respirei fundo e subi os degraus.

A descrição que me deram do último andar fazia jus ao seu estado. Era preciso reparar no chão com cuidado antes de dar cada passo; a luz elétrica não funcionava. O ar era realmente pesado e havia vários móveis quebrados espalhados pelo caminho. Percebi que eu não obteria muito êxito se prosseguisse desta forma, portanto, retornei ao pé da escada e apossei-me de um lampião que ali se encontrava. Reitero que o caminho que fiz foi apenas esse: do último degrau para o primeiro e, novamente, escada acima, portando o lampião. Era humanamente impossível uma pessoa descer a escada sem ser vista e desaparecer enquanto eu ali estava. Ainda assim, munido de luz, vasculhei cada canto daquele andar, revirei cada móvel quebrado, sem encontrar uma viva alma. Minha mente não podia aceitar esta possibilidade, de que não havia ninguém ali. A risada havia sido clara, sua origem, aquele andar. Pensei então que meus colegas pudessem ter um acesso secreto àquele piso, onde eles conduziriam atividades ilícitas e imorais, longe de olhares curiosos. Não me atrevi a pensar na possibilidade de algum dos internos ter chegado ali. Fosse esse o caso, poderíamos ter um problema muito maior em mãos.

Insatisfeito e inquieto, retornei a meus afazeres, completamente distraído pelas inúmeras explicações que, inconscientemente, eu tecia.”

Insatisfeito e inquieto. Ao lembrar-se da última frase lida, Ernesto não pode conter uma breve risada. E então percebeu que este ato seu fizera o Diretor calar-se. Recompondo-se, desculpou-se e pediu ao patrão que continuasse com suas instruções. Por quanto tempo o velho havia falado sem parar? Mas ele apenas dispensou o novo membro, impaciente, e acendeu um cachimbo.

* * *

Não houve como retomar o trabalho sem parar de pensar nas escadas. A noite mal-dormida apenas ajudava o inconsciente a trabalhar, quase fazendo com que Ernesto sonhasse acordado enquanto andava pelas dependências do hospício. Por fim, a vontade o venceu e, sem se preocupar com seus afazeres, ele rumou ao último andar.

A escada era exatamente igual à que ele havia imaginado ao ler o diário. Seus ouvidos estavam atentos ao mais ínfimo dos sons enquanto ele subia lentamente os degraus. Porém, não houve risada alguma. Apenas o lento ranger da madeira sob cada pisada sua. No topo, a poeira e os entulhos de um andar transformado em sótão.

A luz ainda não funcionava ali, mas, como ainda era manhã, o sol entrava por janelas escondidas atrás dos móveis quebrados. Ernesto estava aliviado por perceber que, ao contrário das escadas, o lugar não era como ele havia imaginado. À noite, porém, quando fosse necessário subir aqueles degraus com um lampião... Mas, em plena manhã, o recinto parecia tão calmo quanto seu próprio quarto, distante dos ruídos rotineiros do estabelecimento.

Andando entre os móveis, Ernesto quase chegou a duvidar do relato lido na noite anterior. Quase. Foi quando ele encontrou um curioso conjunto de quadros no chão, encostados em um armário antigo. Havia cinco pinturas ali, trabalhos amadores que não transmitiam nenhum significado óbvio. Cores aleatórias, figuras disformes, apenas um ocasional olho reconhecível ou um boneco de palitos que mal podia ser distinguido. Pinturas dos internos. Não era difícil determinar a origem daqueles quadros. Era uma das novas técnicas de terapia instituídas no hospício, uma alternativa aos métodos tradicionais de violência e encarceramento.

Ao ajuntar os quadros para colocá-los de volta onde estavam, Ernesto se deu conta que não tinha visto o último quadro, um que ficara encostado de frente para o armário. Deixando os outros de lado, ele pegou o quadro restante e virou-o lentamente. A definição desta pintura surpreendeu-o. Era possível dizer com clareza o que significava a maioria dos elementos presentes. E esse reconhecimento fez as mãos de Ernesto tremerem.

A escada que ele acabara de subir estava representada perfeitamente ali. Algo lhe dizia que, mesmo se ele se atrevesse a contar os degraus, encontraria o número correto. A mesma fidelidade era válida para todo o corredor que levava à base da escada. O andar de cima, porém, o sótão onde ele se encontrava, era representado apenas por um pequeno retângulo preto com manchas vermelhas. E entre essas manchas, pequenas figuras brancas, cada uma com a forma de uma meia-lua deitada.

Algum receio repentino fez Ernesto desviar seus olhos do quadro momentaneamente e olhar em volta. Ninguém. Voltou a fitar a pintura, focando-se, desta vez, nas figuras brancas espalhadas pelo sótão negro. Então, foi capaz de reparar mais um detalhe nelas. Todas eram preenchidas por listras verticais, regularmente espaçadas. Sorrisos. Dezenas deles.

O quadro caiu da mão de Ernesto e o barulho causado fez sua respiração parar por um segundo. Desta vez, ele teve medo de olhar em volta. Medo de ver-se cercado por formas fantasmagóricas que não pertenciam mais a este mundo, zombando dele, humilhando-o. Rindo, sem parar.

Retomando o fôlego, ele abaixou-se, tremendo, e pegou o quadro novamente em suas mãos. Mais um novo detalhe. Na base do retângulo negro que representava o último andar, estava desenhado um corpo caído. Ernesto não se conformou com aquele detalhe. Era um elemento grande o suficiente para ter passado despercebido até então. Ele estivera lá este tempo todo e não fora visto? Havia sido ignorado pela mente cansada do psiquiatra na primeira vista? Ou acabara de ter sido criado pela mesma mente cansada? O corpo parecia estranhamente familiar, um homem magro, de cabelo preto e curto, vestindo um jaleco e usando óculos... pavorosamente parecido com Ernesto.

Desviando o olhar, ele esqueceu-se dos medos e ergueu a cabeça. Não sabia se teria a coragem suficiente para voltar a examinar a pintura. De qualquer forma, algo mais o fez esquecer o quadro por aquele instante. No alto da escada, olhando para ele sem expressão alguma, estava um garoto.

* * *

A aparência do garoto era perturbadora. O cabelo louro e espetado não crescia em certa parte de sua cabeça, próximo à testa, onde havia apenas uma grande e feia cicatriz. Seus olhos perdidos fitavam o vazio e seu lábio inferior parecia pesado demais para que a boca ficasse fechada. A roupa, toda suja de barro e de excretas. Levando em conta todas as características grotescas, Ernesto estava certo de que se tratava de Joaquim, o mais novo dos internos.

Ele já ouvira falar sobre o garoto, que fora encontrado em uma casa abandonada com um sério ferimento na cabeça. Nunca se descobriu quem era sua família e o governo financiava sua estadia e tratamento no hospício. O ferimento deixara-o com certas disfunções mentais, privando-lhe de conceitos como moralidade e respeito, o que causou diversas situações constrangedoras com outros internos e com os próprios médicos.

– Aqui não é o Céu? – ele disse sem demonstrar expressão alguma.

Ernesto levou alguns segundos para recuperar-se do susto do quadro e do garoto que chegara furtivo e tudo que conseguiu responder foi um “não”.

Joaquim aproximou-se, e seus olhos não desgrudavam do quadro nas mãos do médico. Pretendendo livrar-se dos dois incômodos, Ernesto entregou a pintura ao garoto e afastou-se bruscamente na direção da escada. Antes de descer o primeiro degrau, porém, ouviu o garoto dizer:

– Carrasco...

Paralisado pela palavra, Ernesto olhou incrédulo para o garoto, que virou-se em sua direção e repetiu o mesmo termo:

– Carrasco. Esse quadro é dele. Eu vi ele pintando.

Carrasco. O nome ainda ecoava, mas ele não sabia se era no aposento ou em sua cabeça. Mais uma vez, os demônios em forma de letras do diário apareceram à sua frente, recontando-lhe o que ele lera durante a madrugada.

“25 de janeiro de 1897.

Por mais estranho e doentio que pareça, a pessoa com quem mais tenho liberdade para conversar neste lugar é o Carrasco. Sua índole é pervertida e seus hábitos são repulsivos, mas sua mente é fascinante. Ao mesmo tempo em que sinto nojo e ódio dele, também sinto respeito e admiração. Apesar de encarcerado e isolado, o homem sabe de alguma coisa. Ele compreende que estas paredes abrigam algum segredo, que as pessoas daqui escondem-se atrás de fachadas para que seus pecados não sejam expostos.

A cada vez que sou obrigado a permanecer na mesma sala que ele, procuro estabelecer certa ligação, demonstrar certa empatia, na esperança de que ele se sinta confortável para falar sobre tais assuntos. Porém, ele sempre fala de forma vaga, obrigando-me a analisar cada frase para encontrar seu significado. Após estudar suas charadas, cheguei à conclusão de que certos atos furtivos foram presenciados por alguns internos, sem que estes tivessem a noção do que estava a ocorrer. E, se minha interpretação está correta, estas infelizes testemunhas foram punidas severamente por terem visto algo que não compreenderam.

Talvez, o próprio Carrasco tenha testemunhado algo. Isso explicaria o certo exagero correcional que às vezes é realizado com ele, mas ainda não consegui aproximar-me o suficiente para ter certeza. Percebi que ele se sente mais à vontade para expressar-se através das pinturas. Se for possível levá-lo novamente para esta terapia, é provável que ele diga mais sobre o que sabe, mesmo que eu tenha que interpretar quadros em vez de frases.”

O Carrasco ainda era um interno na instituição. Ernesto ouvira falar dele assim como ouvira sobre Joaquim. E tudo indicava que agora era a hora de falar com ele, de tentar o que o autor do diário tentaria, levá-lo de volta à terapia de pintura.

– Diz-me, garoto, em que ala se encontra o Carrasco?

– O Carrasco está no Inferno.

Se o sótão era o Céu para Joaquim, os andares subterrâneos seriam o Inferno. Ernesto tomou de volta o quadro das mãos dele e, apressadamente, desceu as escadas, sem se preocupar com o que o garoto poderia fazer ao ser deixado para trás ali. No final da escada, ao olhar mais uma vez para a pintura perturbadora em suas mãos, Ernesto verificou que o corpo retratado, tão semelhante a ele, não mais se encontrava ali.

* * *

Ernesto consultou os registros das sessões para verificar quem era o psiquiatra responsável pelo Carrasco, porém nenhum dos internos estava registrado pelo apelido. Entre todos aqueles nomes, era impossível saber quem era o que ele procurava. Resolveu então perguntar a um funcionário, que lhe respondeu prontamente que o tratamento do Carrasco era feito pelo Dr. Corrêa. Tendo herdado os pacientes da mesma forma que o quarto e o cargo, ele também tinha o direito de completo acesso ao interno.

Assim, ele desceu até o mais inferior dos andares, onde ficavam apenas os pacientes que demonstravam algum perigo. Inferno, o pequeno Joaquim havia dito. Talvez ele não estivesse tão errado. O saneamento daquele andar era inexistente. O mal-cheiro era tamanho que Ernesto chegou a pensar que todas as fossas do instituto desembocassem ali. A iluminação e a ventilação eram mínimas. Ao contrário de seus colegas, Ernesto imaginava se este ambiente precário não estaria influenciando na recuperação dos pacientes. Mas parecia que ninguém mais se importava.

Havia apenas um faxineiro no andar, que não deu a mínima atenção para a presença do médico ali. Virando a primeira curva, Ernesto chegou à cela do Carrasco. Parado a alguns passos da porta, chamou-o:

– Carrasco! – Pois não sabia seu nome.

Houve barulho de movimentos no interior e logo uma mão suja apoiou-se nas barras da pequena janela. Havia um rosto por trás daquela mão, mas não era possível distinguir com clareza suas feições, apenas uma barba por fazer e uma boca desprovida de vontade.

– Não te conheço. – A voz era calma, porém, ameaçadora. – E vejo que também não me conheces.

– Sou o Dr. Ernesto, recém-contratado pelo hospício para substituir teu conhecido Dr. Corrêa. Deves saber que ele faleceu há pouco. E se conhecesse teu nome, chamar-te-ia de acordo.

– O Dr. Corrêa foi um homem bom, mas não mais que um tolo. És o mesmo tipo de homem?

– Não posso comparar-me a alguém que não conheci. Na verdade, sei mais ao teu respeito que ao dele. E é por isso que venho aqui. Sei que ele tratava-te com terapias, com pinturas. – Ernesto aproximou-se cuidadosamente da porta.

– E foi aí que começou sua ruína. Ele buscava significado nas obras de um louco. Buscava razão onde só havia caos e insanidade. Mas só encontrou o que lá havia de fato: o caminho para a perdição.

Este homem não é louco, pensava Ernesto. Pode ter cometido crimes hediondos perante os olhos da sociedade, mas executou-os com lucidez e clareza, as mesmas que mostra agora. E, definitivamente, ele sabe de algo. Só preciso fazer com que confie em mim.

– Sei que o Dr. Corrêa ajudou-te a lidar com teus problemas. Li que encontrou uma maneira para que tu expresses aquilo que te incomoda. Que ele era capaz de decifrar tuas pinturas.

– Leu? – A risada que dele veio era como o rosnado de um animal perigoso. – Então és mais tolo ainda do que pensei. Em primeiro, por entregar-te a tais escrituras. E em segundo, por acreditar que o autor fora o Dr. Corrêa. Parte daqui enquanto é tempo, doutor. Não cometas o mesmo erro de teu antecessor. Não leias algo que nunca devia ser lido.

Ernesto não podia ver o homem dentro da cela, mas sabia que era alguém de certo porte, capaz de intimidar facilmente homens menores como ele. E era assim que ele se sentia, intimidado. A frieza do Carrasco e a revelação de que o autor do diário era outro foram bastante incômodas, fazendo com que ele quisesse sair dali o quanto antes. Mas não podia partir assim, sem sanar ao menos a mais crucial das dúvidas:

– Se o Dr. Corrêa não é o autor, quem é então?

– Achas mesmo que ele morreu como conseqüência da idade avançada? A verdade é perigosa, doutor. Foram perguntas deste tipo que cavaram sua tumba. – À medida que proferia estas últimas palavras, o Carrasco afastava-se mais para o fundo de sua cela, saindo totalmente do campo de visão de Ernesto.

* * *

A conversa com o Carrasco deixara-o completamente abalado. No lugar de respostas, ele encontrara apenas mais perguntas. Mas algo lhe dizia que ele estava no caminho certo. Havia um segredo final e ele estava bem próximo. O que quer que este segredo fosse, sua chave era o diário. Mas quem o escrevera?

O Dr. Corrêa havia sido apenas um leitor, atraído pela estranheza do diário da mesma forma que acontecia com Ernesto agora. Mas ele foi fraco e sucumbiu aos segredos e seus guardiões. Ernesto podia provar-se mais forte que ele. Podia tornar-se digno de chegar ao final da charada. E o caminho para tal, ele pensava, era descobrir quem era o autor daquele diário. Ele estivera aqui algum dia, pode ainda estar por aqui, vivo. Precisava encontrá-lo.

A solução parecia tão simples que, mais uma vez, privou-o de qualquer concentração no trabalho durante o resto do dia. Os afazeres foram todos terminados com pressa e sem atenção, completamente menosprezados se comparados à grandiosa tarefa de ler mais do diário. A noite finalmente chegou e o reencontro com as letras já familiares propiciou-lhe um alívio incomparável.

“15 de junho de 1897.

Finalmente, após meses, algo concreto em minha busca pela verdade. Se minha interpretação da última pintura do Carrasco estiver correta, obtenho ao mesmo tempo uma resposta a minhas indagações e uma arma contra aqueles que administram este lugar. A obra trata-se de uma retratação fiel do último andar e da escada que leva até ele. No topo, há apenas escuridão e figuras que podem ser entendidas como sorrisos sem dono. Ultimamente, o Carrasco tem falado muito sobre desrespeito, maus tratos e humilhação. Sempre de forma críptica, mas ainda capaz de ser relacionada com sua pintura.

Sou levado a concluir que o último andar é o local para onde ele foi levado e, lá, submetido a algum tipo de tortura, física ou mental, devido a algo que tenha presenciado aqui. Não sei ainda quais segredos ele descobriu, mas sei ao menos o que foi feito com ele. E pretendo fazer algo a respeito.

É chegada a hora de fazer frente aos demônios que se auto-intitulam restauradores da saúde mental. Levarei esta empreitada até o fim, ou meu nome não é João Batista. E deixo este diário, uma acusação contra todos os inescrupulosos médicos e funcionários deste lugar, para que, caso eu falhe e seja impedido de continuar minha cruzada, outros possam se armar com a informação necessária para subjugar os pecadores.”

Um nome! O detalhe de que ele tanto precisava! Restava agora saber se o tal João Batista ainda trabalhava no hospício, ou para onde havia partido, se ainda estivesse vivo. Era hora de alcançar o segredo final.

* * *

Ainda no meio da noite, Ernesto deixou seu quarto para investigar os registros dos médicos residentes. Era um assunto que não podia esperar até a manhã, quando seus adversários estivessem todos acordados e prontos para impedir suas ações. Na sala de registros, revirou todas as gavetas, todos os armários e baús, mas nem um sinal do que procurava.

Quando percebeu, um dos zeladores estava de pé na entrada da sala, olhando para ele com certo receio. Quando foi visto, o zelador se pôs na direção oposta e tocou um sino que havia no corredor. Surpreso com a reação do funcionário, Ernesto não sabia ao certo o que fazer. Ele já estava exposto, isso era certo. Quando os outros soubessem de sua incursão noturna aos arquivos, fariam um inquérito e logo descobririam que ele estava à procura de João Batista. Não havia mais tempo. Tudo o que restava a fazer era encarar de frente seus oponentes.

Dois psiquiatras e três enfermeiros logo chegaram à sala. Rapidamente, Ernesto percebeu a maneira como olhavam para ele e como se aproximavam. Ele já havia visto esse padrão antes, era a maneira como eles abordavam algum interno para detê-lo e controlá-lo. Era isso o que ele parecia para eles agora? Um lunático? Se pudesse ver a si mesmo, em meio ao caos que se tornara a sala de registros, com o semblante transtornado que exibia, chegaria à mesma conclusão. Enquanto os enfermeiros rodeavam-no, prontos para prendê-lo, Ernesto apontou o dedo para os médicos, que se mantiveram a certa distância e gritou:

– Não há mais como guardar este segredo! Mataram todos aqueles que sabiam, terão que matar a mim também! Mas não antes que eu diga ao mundo o que acontece aqui! O pobre João Batista estava certo! Ele foi o primeiro a descobrir toda a verdade! E o que fizeram com ele? Não só desapareceram com ele, como também fizeram desaparecer qualquer registro sobre ele! Suponho que o mesmo também tenha acontecido com o Dr. Corrêa, não é mesmo? Ele sabia demais... e teve o mesmo fim... E vejo que o próximo serei eu...

Os médicos trocaram olhares preocupados enquanto Ernesto se manifestava, um misto de pena e cautela. Os enfermeiros fecharam-se sobre ele e não havia mais como escapar. Uma seringa perfurou seu braço com violência e ele sentiu a consciência esvaindo-se sem esperanças de resistência. Seus gritos cessaram e ele ainda foi capaz de ver o diretor do hospício chegando no local, ainda de pijamas.

– Parece que ele teve certo tipo de contato com João Batista, senhor. – Um dos médicos lhe informava. – O melhor seria...

Os lábios mexiam-se, mas já não havia mais som. Logo, as imagens também partiram. Apenas as trevas permaneceram.

* * *

O silêncio foi interrompido por um constante som de lápis correndo sobre papel. Era um som irritante, rápido e incansável. Ainda assim, denotava certa familiaridade. Aos poucos, o som despertou seus outros sentidos. Quando foi capaz de distinguir os cheiros que sentia, preferiu voltar ao estado anterior, em que eles estavam ausentes. Mas eles diziam-lhe algo. Diziam que ele estava em algum lugar conhecido. Algum lugar escuro e profundo. O Inferno.

Sentando-se bruscamente, Ernesto colocou-se de costas contra a parede úmida, para que pudesse ficar de frente para a figura que compartilhava sua cela. A luz fraca não o ajudava muito a identificar seu companheiro. Podia ver apenas que ele também estava sentado, e seus pés estavam descalços.

– Quem... quem és? – A pergunta saiu bastante arrastada, sem dúvida por efeito das drogas que lhe haviam aplicado.

A escrita parou bruscamente e a voz que veio das trevas era calma e pensativa:

– Ah... despertaste. Bem-vindo, amigo.

O lápis continuou seu caminho incessante sobre o papel e Ernesto forçava sua memória a lembrar-se daquela voz. Era uma voz conhecida, mas em um tom diferente. Aproximando-se, ele pôde ver o queixo e as mãos e então se lembrou do Carrasco. Mas ele não falava tão calmamente nem usava óculos como agora. O lápis era incansável.

“6 de dezembro de 1898.

Acabo de descobrir que um novo paladino junta-se à minha cruzada. Ele encontrou meus relatos anteriores e prosseguiu com a busca. Agora que estamos do mesmo lado, serei capaz de ensiná-lo melhor como proceder a partir deste ponto. O pobre infeliz teve o infortúnio de ter sido agredido pelos internos assim que chegou e agora ainda se encontra atordoado, mas acredito que em breve poderá me auxiliar no tratamento do Carrasco.”

– Quem sou, perguntas? Meu nome é João Batista. Esperei muito por ti.

sexta-feira, 9 de março de 2012

O Levantar

O céu noturno tornou-se ainda mais escuro com o início do cântico. As nuvens distantes esticavam longos dedos retorcidos para agarrar a lua cheia, com seu rosto amarelado-cinzento, que mais parecia a carcaça de alguma criatura inchada que fora abandonada para apodrecer no firmamento.

O vento chegou sorrateiramente, conjurado pelas sílabas profanas que se espalhavam pelo cemitério com um tom confiante e opressor de dominação. E ao chegar, tocava cada galho nu, trazendo sua frieza mórbida e fazendo os mais finos tremerem e agitarem-se, desprotegidos, indefesos, sujeitos às desgraças que logo ali ocorreriam.

Os habitantes da noite foram atraídos pelo espetáculo sombrio que aos poucos se desenrolava. Aranhas observavam atentas de suas teias, morcegos voavam mais baixo, vermes abriam caminho pelo solo até a superfície e corvos curiosos assistiam ao ritual, espalhados pelas árvores mais distantes e pousados nos muros cobertos de musgos.

O cântico sinistro prosseguia, mas não era entoado por nenhuma voz viva. A entidade que o proferia encontrava-se de pé diante de uma cova recente, trajada com os resquícios do que um dia fora uma elegante bata sacerdotal. Suas costelas amareladas eram visíveis pelos rasgos nas vestes e, abrigadas por elas, dois sacos de tecido escuro e necrosado inflavam-se e esvaziavam-se em um ritmo incomum, desacostumados ao movimento. Quando murchavam, faziam surgir um sussurro áspero que saía pela boca da criatura sem lábios e aumentava em volume de uma maneira sobrenatural ao se dispersar pelo ar.

Não havia ninguém ainda vivo pelas redondezas que pudesse ouvir aquela voz. Se houvesse, sentiria a presença marcante da morte no local, com uma certeza assustadora e desanimadora. Não apenas pela voz do além-túmulo, mas pela sensação de perdição que tomava o ambiente e pela ausência de cor na paisagem, trazendo à tona as lembranças mais lúgubres como se elas fossem as únicas que pudessem ser recordadas.

Os versos entoados adquiriram um tom mais agressivo e o orador passou a agitar seus braços esqueléticos ao ritmo dos sons, como um maestro fantasmagórico regendo uma sinfonia fúnebre. A resposta de seus gestos, porém, não vinha de outros músicos ou instrumentos, e sim de tendões enterrados a sete palmos da superfície. Puxados por sinistros fios invisíveis, eles faziam os dedos do cadáver contraírem-se e lembrarem-se de como era se movimentar.

A mente do orador atravessava o solo úmido e entrava em comunhão com o defunto, estabelecendo completo controle sobre seu corpo. Seus braços e pernas contraíam-se bruscamente, sua mandíbula abria-se e fechava, mastigando despropositalmente a terra que o envolvia e, aos poucos, bem aos poucos, ele subia em direção ao ar livre.

Após inúmeras repetições do cântico profano, a superfície do solo do cemitério agitou-se e uma mão acinzentada surgiu, agarrando o ar noturno. Pouco depois, a cabeça do falecido infeliz também erguia-se do chão, sacudindo-se, livrando-se da terra que a cobria, porém, sem muito sucesso, já que as lacerações no rosto e no pescoço ainda retinham consideráveis porções. Os olhos finalmente abriram-se, arregalaram-se, e, combinados com a boca podre escancarada, pareciam exprimir intensa dor e raiva. Era, porém, uma impressão que não condizia com a realidade. Aquela era uma criatura desprovida de emoções e sentimentos. Uma marionete decadente. Um reles instrumento nas mãos daquele que o invocara.

Ou, ao menos, era assim que deveria ser.

Sem o conhecimento do bruxo necromante, uma fagulha de consciência acendeu-se na mente do cadáver. Um mero resquício de sua mente desperta, uma recordação de uma vida inteira vivida, aproveitada e fatidicamente terminada.

Suas mãos apalpavam a terra, que ainda cobria metade de seu corpo, sem saber por que e até mesmo sem entender que substância era aquela. Sua boca continuava abrindo-se e fechando repetitivamente, trazendo a lembrança de que poderia haver algo ali para mastigar, mas o quê?

Mais alguns instantes e o corpo inteiro já se encontrava livre da terra. Estava de pé, mas sem firmeza, sem postura. Os joelhos não conseguiam esticar-se completamente e as mãos teimavam em erguer-se, mas não tinham um objetivo e voltavam a cair pelo lado do corpo. Os olhos de aparência assustada sondavam os arredores, imitando um comportamento vivo, como se buscasse descobrir algo sobre o local, mas não era uma ação instintiva e, sim, um reflexo remanescente de situações ocorridas durante a vida.

Desde que se colocara de pé, não estava sendo controlado por aquele que o convocara. Havia uma certa autonomia no cadáver que lhe permitia movimentar-se, mas sem objetivo, apenas uma paródia de um ser humano. E cada movimento fazia um lampejo de memória acender-se por um mero instante na mente do defunto.

O necromante retomou as rédeas de seu servo e instruiu-o a acompanhá-lo para fora dali. O estágio de decomposição do mestre era ainda pior que o do criado, mas ele era de uma natureza diferente, chegara àquele estado por vontade própria, através de encantos proibidos e do sacrifício de sua própria alma e, portanto, mesmo com pouquíssima carne ainda presa aos seus ossos, movia-se com mais firmeza e velocidade.

Do lado de fora dos portões do cemitério, uma escolta sepulcral os aguardava. Eram cinco mortos reanimados, assim como aquele que acabara de levantar-se de sua cova, frutos de rituais anteriores de seu mestre. Cinco guardiões decrépitos, podres e medonhos, cinco marionetes desmortas que poderiam lançar-se impiedosamente contra aqueles que ousassem cruzar o caminho do bruxo. Se tal embate ocorresse, seria um confronto de enorme injustiça, pois aqueles guerreiros do além-túmulo não eram submetidos à dor ou ao cansaço, continuariam lutando mesmo que tivessem seus membros decepados, além de portarem cruéis armamentos, as mesmas espadas e machados velhos que empunhavam em vida.

Encobertos pela noite, a sombria procissão espectral, líder e soldados, partia em direção a seu refúgio, oculto nas trevas do horizonte. O amanhecer aproximava-se e trazia a luz do sol, um grande e inevitável incômodo. Pelo menos durante algumas horas, os vivos estariam livres daquelas presenças malignas, até a hora do próximo anoitecer, quando os mortos novamente se levantariam e caminhariam pela terra.