segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Rei Arthur e os leitores de HQs da Idade Média

 


O que as pessoas liam e escreviam na Idade Média, quando ainda não havia HQs e super-heróis? Os poemas e canções de cavalaria da época ainda são bem conhecidos hoje em dia, principalmente aqueles em torno do Rei Arthur e sua Távola Redonda. O que talvez não seja tão popular são as características que estas histórias compartilham com nossas HQs atuais.

Terminei de ler Le Morte d’Arthur (1485), por Sir Thomas Mallory, um livro que por si só já mostra diversas peculiaridades da literatura da época. Não vou me prolongar sobre as estranhezas mais técnicas, como a grafia diferente das palavras, o uso incomum (hoje em dia) dos pronomes e a falta de aspas ou travessões evidenciando as falas dos personagens. O mais marcante nessa obra é a abordagem da história e como seus elementos são tratados.

Os inúmeros personagens (e bota inúmeros nisso - dá pra deixar o GRRM com inveja) sempre tem um nome e uma origem bem definidos, e só. Raramente há alguma descrição sobre sua aparência ou idade, e sua personalidade só é evidenciada em momentos críticos da história, quando presentes. Com isso, é fácil perder-se nas referências e na continuidade, quando algum dos personagens fica um tempo sem aparecer e ressurge na história. Bem parecido com o que acontece na Ilíada e no Silmarillion (nesse caso, propositalmente, já que a intenção da obra é ser um contemporâneo artificial das outras obras mencionadas). Até as listas de nomes são parecidas, igual ao Faustão com seus papeizinhos lendo os nomes das pessoas que vieram em cada caravana.

Mas e o que a obra tem a ver com HQs atuais? Talvez durante a leitura do texto, essa semelhança não fique evidente, mas ao terminar o livro e me aprofundar sobre sua origem foi que comecei, inevitavelmente, a comparar os dois estilos separados por séculos na história.

É apropriado dizer que o livro todo é uma grande compilação de histórias. Não se trata apenas do Rei Arthur, mas de diversos cavaleiros de sua ordem, e de suas aventuras solo. Em sua maior parte, elas nem lhe dizem respeito. Ele é apenas o elemento que liga todas as histórias. Sempre que um cavaleiro em alguma história diz pertencer à Távola Redonda, temos a reafirmação de que essas histórias todas acontecem no mesmo contexto. E apesar de estarem todas reunidas num mesmo volume, nesta edição, todas elas tiveram origens diferentes. Tratam-se de histórias tradicionais de pontos distintos da Europa, principalmente Grã-Bretanha, Irlanda e França. Algumas, inclusive, que precedem as histórias do próprio Rei Arthur. O que os contadores de história fizeram, ao longo do tempo, foi adaptarem estas histórias para que elas se encaixassem no mesmo universo compartilhado.

Se pegarmos, por exemplo, a história de Sir Percival, e analisarmos seu desenvolvimento, encontraremos diversas versões, reescritas e modificadas, desde o século XII. Na versão mais antiga de que se tem conhecimento, ainda estão presentes elementos celtas (a lança, o caldeirão e a espada) que mais tarde foram sintetizados e cristianizados no Santo Graal. Depois desta “primeira” versão, de Chrétien de Troyes, outros contadores (pelo menos 7 até o século XIII) tomaram as rédeas da história e criaram continuações e prólogos. E a cada acréscimo, a história se tornava mais próxima e relevante à história central do Rei Arthur e da busca pelo Santo Graal.

Os leitores da época não enviavam cartas aos editores demonstrando sua insatisfação ou desejos por histórias futuras. Em vez disso, os mais privilegiados conquistavam os favores dos próprios autores e encomendavam diretamente novas histórias com elementos específicos que eles queriam ver ali. O já mencionado Chrétien de Troyes, por exemplo, possivelmente escreveu Lancelot, o Cavaleiro da Carroça como uma encomenda para Marie de Champagne, que queria ver um caso entre o cavaleiro e a rainha Guinevere. Até então, Lancelot era um personagem de histórias da Bretanha ainda não relacionado à ordem de cavaleiros de Arthur.

Outra característica em comum entre a obra e as HQs é a atemporalidade das histórias. Os personagens centrais não demonstram sinais de envelhecimento, mesmo após serem pais (ou até avós), e suas histórias simplesmente continuam, continuam, até terem mais histórias do que seria possível em uma vida humana. Eles também não se modificam em sua essência. São arquétipos fixos, e cada vez que uma história nova surge, independentemente de onde ela se encaixe na trama ou do século em que tenha sido escrita, ela segue o arquétipo dos personagens.

O mais marcante de toda essa análise é a proximidade que percebi entre os leitores de hoje e os leitores do século XII. Os meios mudaram, os valores mudaram, mas o envolvimento com uma história que traz continuidade e que sempre pode apresentar um novo trecho continua. Novos autores continuam surgindo e dando sequência ao trabalho de seus predecessores, enquanto outros visitam obras clássicas e dão seu próprio toque pessoal, o que muitas vezes acaba tomando o lugar do original na aceitação dos leitores. Nunca teria imaginado que, a partir de um leitura com o objetivo de me aprofundar na literatura medieval e nas origens das lendas arturianas, eu teria chegado a uma análise literária de HQs e seus leitores contemporâneos.