quarta-feira, 11 de abril de 2012

O Diário

O jovem psiquiatra adentrou lentamente o quarto de seu predecessor. Era direito seu fazer isso, mas, ainda assim, parecia-lhe uma invasão de privacidade, tantos eram os objetos pessoais deixados para trás, não havendo ninguém para herdá-los. Estava claro que levaria algum tempo de mudanças e faxinas até que o recinto se tornasse realmente seu quarto. Parece um dos melhores do Hospício, ele pensou, já que dali não se podia ouvir os ruídos incessantes dos internos do outro lado do pátio – um privilégio honestamente alcançado pelo falecido Dr. Corrêa.

Colocando a mala ao chão, ao lado da cama, o jovem sentou-se à mesa e pôs-se a escrever uma carta para casa. Após dar detalhes de sua viagem e chegada ao Rio de Janeiro, ele finalizou:

“O pagamento é realmente tudo aquilo que me disseram. Em apenas alguns meses, serei capaz de trazer-te para cá, junto com as meninas.

De teu filho querido,

Ernesto”

Foi apenas quando começou a dobrar o papel da carta para colocá-la no envelope que reparou no livro sobre o qual escrevera a mensagem. Um livro fino e pequeno, com capa de couro marrom, de um tipo muito comum para fazer anotações e registros. Após apropriar-se do quarto e do cargo, não seria um crime tão grande virar a primeira página de um livro que provavelmente continha anotações pessoais. E ele o fez.

“Aquele que caça monstros deve tomar cuidado para não tornar-se ele mesmo um monstro.”

A foto de um corpo mutilado não poderia tê-lo assustado mais do que a simples frase. Não eram apenas letras ajuntadas com um significado; cada caractere parecia uma expressão única de sofrimento, uma forma de livrar-se de um mal incurável, um garrancho com uma personalidade maligna. Eram dezenas de pequenos rostos de demônios chamando-o, impelindo-o a passar mais uma pámpelindo-o a passar mais uma pidadencurse. para n de um tipo muito comum para fazer anotaçgina, a arriscar-se num mundo de medos e de segredos. E a frase, ele sabia que já ouvira aquela frase antes, não fazia muito tempo. Uma citação, mas de quem? Um aviso? Para quem?

Percebendo que prendera a respiração enquanto olhava para a lúgubre página, Ernesto suspirou. Um breve olhar para a porta aberta confirmou-lhe que o corredor além estava vazio. Os outros quartos estavam em silêncio. Com passos trêmulos até a porta, ele fechou-a lentamente, com medo dos próprios sons, e olhou de volta para a mesa e para o curioso manuscrito que sobre ela se encontrava.

– Fecharei aquela coisa maldita e dormirei. – Ele pensou. – Amanhã é meu primeiro dia de trabalho e não posso perder tempo com tolices.

Uma hora passou-se e o sono não veio. Ernesto levantou-se da cama e retornou à mesa e ao livro.

* * *

No dia seguinte, após preparar um copo cheio de café quente, Ernesto se escorava na parede da sala de tratamento enquanto o Diretor lhe explicava a rotina do lugar. A maioria do que foi dito se perdeu em questão de segundos. Havia algo sobre oficinas para os internos, onde eles aprenderiam diversas funções de manufatura. Mas que deixe o velho falar. De que importava a rotina do Hospício agora? As páginas manuscritas passavam perante seus olhos novamente, em pleno ar. Nada mais existia.

“18 de janeiro de 1897.

Não sei ao certo porque decidi começar este diário, já que as únicas pessoas ao meu redor capazes de ler o que escrevo são as pessoas de quem escondo o que tenho descoberto. Ainda assim, mantenho esperanças de que um dia estas anotações caiam nas mãos de alguém que se importe, alguém de fora daqui, que ainda não tenha sido distorcido pelo mal que permeia este lugar.

Inicio meu relato comentando sobre o comportamento dos internos. Há uma grande tendência entre eles em acharem que não são loucos, como seria esperado. Porém, em muitos momentos, eles realmente parecem sãos. São capazes de estabelecer diálogos coerentes, sobre assuntos complexos. Não fossem os recorrentes casos de distúrbios de personalidade, eu mesmo emitiria um atestado de sua sanidade e lucidez.

Meus colegas, ao contrário, não são capazes de perceber estas nuances. Tratam-nos como qualquer interno em qualquer hospício. Talvez seja este o motivo pelo qual me excluem. Consideram-se os donos da verdade, apenas por estarem aqui há mais tempo que eu. Portanto, também evito conversar com eles a respeito dos fenômenos recentes que tenho observado. Pretendo descobrir a natureza destes fenômenos e temo que abordar este assunto com eles possa apenas dificultar minha meta.

Quando digo fenômenos, refiro-me a estranhos eventos que tenho presenciado nesta instituição. O primeiro fato ocorrido foi há cerca de um mês, enquanto eu passava próximo à escada que leva ao último andar do Hospício. O nítido som de uma risada chegou aos meus ouvidos, vindo do alto dos degraus. Foi uma risada abafada e logo contida por seu emissor, mas, ainda assim, capaz de ser ouvida. Desde que estou aqui, disseram-me que o último andar encontra-se em condições precárias, que o ar lá é impuro e que o piso precisa de reparos. Porém, mesmo com todas essas adversidades, alguém estava lá e, provavelmente, estava acompanhado. Não fui capaz de aquietar minha curiosidade. Aquele fato precisava de respostas. Respirei fundo e subi os degraus.

A descrição que me deram do último andar fazia jus ao seu estado. Era preciso reparar no chão com cuidado antes de dar cada passo; a luz elétrica não funcionava. O ar era realmente pesado e havia vários móveis quebrados espalhados pelo caminho. Percebi que eu não obteria muito êxito se prosseguisse desta forma, portanto, retornei ao pé da escada e apossei-me de um lampião que ali se encontrava. Reitero que o caminho que fiz foi apenas esse: do último degrau para o primeiro e, novamente, escada acima, portando o lampião. Era humanamente impossível uma pessoa descer a escada sem ser vista e desaparecer enquanto eu ali estava. Ainda assim, munido de luz, vasculhei cada canto daquele andar, revirei cada móvel quebrado, sem encontrar uma viva alma. Minha mente não podia aceitar esta possibilidade, de que não havia ninguém ali. A risada havia sido clara, sua origem, aquele andar. Pensei então que meus colegas pudessem ter um acesso secreto àquele piso, onde eles conduziriam atividades ilícitas e imorais, longe de olhares curiosos. Não me atrevi a pensar na possibilidade de algum dos internos ter chegado ali. Fosse esse o caso, poderíamos ter um problema muito maior em mãos.

Insatisfeito e inquieto, retornei a meus afazeres, completamente distraído pelas inúmeras explicações que, inconscientemente, eu tecia.”

Insatisfeito e inquieto. Ao lembrar-se da última frase lida, Ernesto não pode conter uma breve risada. E então percebeu que este ato seu fizera o Diretor calar-se. Recompondo-se, desculpou-se e pediu ao patrão que continuasse com suas instruções. Por quanto tempo o velho havia falado sem parar? Mas ele apenas dispensou o novo membro, impaciente, e acendeu um cachimbo.

* * *

Não houve como retomar o trabalho sem parar de pensar nas escadas. A noite mal-dormida apenas ajudava o inconsciente a trabalhar, quase fazendo com que Ernesto sonhasse acordado enquanto andava pelas dependências do hospício. Por fim, a vontade o venceu e, sem se preocupar com seus afazeres, ele rumou ao último andar.

A escada era exatamente igual à que ele havia imaginado ao ler o diário. Seus ouvidos estavam atentos ao mais ínfimo dos sons enquanto ele subia lentamente os degraus. Porém, não houve risada alguma. Apenas o lento ranger da madeira sob cada pisada sua. No topo, a poeira e os entulhos de um andar transformado em sótão.

A luz ainda não funcionava ali, mas, como ainda era manhã, o sol entrava por janelas escondidas atrás dos móveis quebrados. Ernesto estava aliviado por perceber que, ao contrário das escadas, o lugar não era como ele havia imaginado. À noite, porém, quando fosse necessário subir aqueles degraus com um lampião... Mas, em plena manhã, o recinto parecia tão calmo quanto seu próprio quarto, distante dos ruídos rotineiros do estabelecimento.

Andando entre os móveis, Ernesto quase chegou a duvidar do relato lido na noite anterior. Quase. Foi quando ele encontrou um curioso conjunto de quadros no chão, encostados em um armário antigo. Havia cinco pinturas ali, trabalhos amadores que não transmitiam nenhum significado óbvio. Cores aleatórias, figuras disformes, apenas um ocasional olho reconhecível ou um boneco de palitos que mal podia ser distinguido. Pinturas dos internos. Não era difícil determinar a origem daqueles quadros. Era uma das novas técnicas de terapia instituídas no hospício, uma alternativa aos métodos tradicionais de violência e encarceramento.

Ao ajuntar os quadros para colocá-los de volta onde estavam, Ernesto se deu conta que não tinha visto o último quadro, um que ficara encostado de frente para o armário. Deixando os outros de lado, ele pegou o quadro restante e virou-o lentamente. A definição desta pintura surpreendeu-o. Era possível dizer com clareza o que significava a maioria dos elementos presentes. E esse reconhecimento fez as mãos de Ernesto tremerem.

A escada que ele acabara de subir estava representada perfeitamente ali. Algo lhe dizia que, mesmo se ele se atrevesse a contar os degraus, encontraria o número correto. A mesma fidelidade era válida para todo o corredor que levava à base da escada. O andar de cima, porém, o sótão onde ele se encontrava, era representado apenas por um pequeno retângulo preto com manchas vermelhas. E entre essas manchas, pequenas figuras brancas, cada uma com a forma de uma meia-lua deitada.

Algum receio repentino fez Ernesto desviar seus olhos do quadro momentaneamente e olhar em volta. Ninguém. Voltou a fitar a pintura, focando-se, desta vez, nas figuras brancas espalhadas pelo sótão negro. Então, foi capaz de reparar mais um detalhe nelas. Todas eram preenchidas por listras verticais, regularmente espaçadas. Sorrisos. Dezenas deles.

O quadro caiu da mão de Ernesto e o barulho causado fez sua respiração parar por um segundo. Desta vez, ele teve medo de olhar em volta. Medo de ver-se cercado por formas fantasmagóricas que não pertenciam mais a este mundo, zombando dele, humilhando-o. Rindo, sem parar.

Retomando o fôlego, ele abaixou-se, tremendo, e pegou o quadro novamente em suas mãos. Mais um novo detalhe. Na base do retângulo negro que representava o último andar, estava desenhado um corpo caído. Ernesto não se conformou com aquele detalhe. Era um elemento grande o suficiente para ter passado despercebido até então. Ele estivera lá este tempo todo e não fora visto? Havia sido ignorado pela mente cansada do psiquiatra na primeira vista? Ou acabara de ter sido criado pela mesma mente cansada? O corpo parecia estranhamente familiar, um homem magro, de cabelo preto e curto, vestindo um jaleco e usando óculos... pavorosamente parecido com Ernesto.

Desviando o olhar, ele esqueceu-se dos medos e ergueu a cabeça. Não sabia se teria a coragem suficiente para voltar a examinar a pintura. De qualquer forma, algo mais o fez esquecer o quadro por aquele instante. No alto da escada, olhando para ele sem expressão alguma, estava um garoto.

* * *

A aparência do garoto era perturbadora. O cabelo louro e espetado não crescia em certa parte de sua cabeça, próximo à testa, onde havia apenas uma grande e feia cicatriz. Seus olhos perdidos fitavam o vazio e seu lábio inferior parecia pesado demais para que a boca ficasse fechada. A roupa, toda suja de barro e de excretas. Levando em conta todas as características grotescas, Ernesto estava certo de que se tratava de Joaquim, o mais novo dos internos.

Ele já ouvira falar sobre o garoto, que fora encontrado em uma casa abandonada com um sério ferimento na cabeça. Nunca se descobriu quem era sua família e o governo financiava sua estadia e tratamento no hospício. O ferimento deixara-o com certas disfunções mentais, privando-lhe de conceitos como moralidade e respeito, o que causou diversas situações constrangedoras com outros internos e com os próprios médicos.

– Aqui não é o Céu? – ele disse sem demonstrar expressão alguma.

Ernesto levou alguns segundos para recuperar-se do susto do quadro e do garoto que chegara furtivo e tudo que conseguiu responder foi um “não”.

Joaquim aproximou-se, e seus olhos não desgrudavam do quadro nas mãos do médico. Pretendendo livrar-se dos dois incômodos, Ernesto entregou a pintura ao garoto e afastou-se bruscamente na direção da escada. Antes de descer o primeiro degrau, porém, ouviu o garoto dizer:

– Carrasco...

Paralisado pela palavra, Ernesto olhou incrédulo para o garoto, que virou-se em sua direção e repetiu o mesmo termo:

– Carrasco. Esse quadro é dele. Eu vi ele pintando.

Carrasco. O nome ainda ecoava, mas ele não sabia se era no aposento ou em sua cabeça. Mais uma vez, os demônios em forma de letras do diário apareceram à sua frente, recontando-lhe o que ele lera durante a madrugada.

“25 de janeiro de 1897.

Por mais estranho e doentio que pareça, a pessoa com quem mais tenho liberdade para conversar neste lugar é o Carrasco. Sua índole é pervertida e seus hábitos são repulsivos, mas sua mente é fascinante. Ao mesmo tempo em que sinto nojo e ódio dele, também sinto respeito e admiração. Apesar de encarcerado e isolado, o homem sabe de alguma coisa. Ele compreende que estas paredes abrigam algum segredo, que as pessoas daqui escondem-se atrás de fachadas para que seus pecados não sejam expostos.

A cada vez que sou obrigado a permanecer na mesma sala que ele, procuro estabelecer certa ligação, demonstrar certa empatia, na esperança de que ele se sinta confortável para falar sobre tais assuntos. Porém, ele sempre fala de forma vaga, obrigando-me a analisar cada frase para encontrar seu significado. Após estudar suas charadas, cheguei à conclusão de que certos atos furtivos foram presenciados por alguns internos, sem que estes tivessem a noção do que estava a ocorrer. E, se minha interpretação está correta, estas infelizes testemunhas foram punidas severamente por terem visto algo que não compreenderam.

Talvez, o próprio Carrasco tenha testemunhado algo. Isso explicaria o certo exagero correcional que às vezes é realizado com ele, mas ainda não consegui aproximar-me o suficiente para ter certeza. Percebi que ele se sente mais à vontade para expressar-se através das pinturas. Se for possível levá-lo novamente para esta terapia, é provável que ele diga mais sobre o que sabe, mesmo que eu tenha que interpretar quadros em vez de frases.”

O Carrasco ainda era um interno na instituição. Ernesto ouvira falar dele assim como ouvira sobre Joaquim. E tudo indicava que agora era a hora de falar com ele, de tentar o que o autor do diário tentaria, levá-lo de volta à terapia de pintura.

– Diz-me, garoto, em que ala se encontra o Carrasco?

– O Carrasco está no Inferno.

Se o sótão era o Céu para Joaquim, os andares subterrâneos seriam o Inferno. Ernesto tomou de volta o quadro das mãos dele e, apressadamente, desceu as escadas, sem se preocupar com o que o garoto poderia fazer ao ser deixado para trás ali. No final da escada, ao olhar mais uma vez para a pintura perturbadora em suas mãos, Ernesto verificou que o corpo retratado, tão semelhante a ele, não mais se encontrava ali.

* * *

Ernesto consultou os registros das sessões para verificar quem era o psiquiatra responsável pelo Carrasco, porém nenhum dos internos estava registrado pelo apelido. Entre todos aqueles nomes, era impossível saber quem era o que ele procurava. Resolveu então perguntar a um funcionário, que lhe respondeu prontamente que o tratamento do Carrasco era feito pelo Dr. Corrêa. Tendo herdado os pacientes da mesma forma que o quarto e o cargo, ele também tinha o direito de completo acesso ao interno.

Assim, ele desceu até o mais inferior dos andares, onde ficavam apenas os pacientes que demonstravam algum perigo. Inferno, o pequeno Joaquim havia dito. Talvez ele não estivesse tão errado. O saneamento daquele andar era inexistente. O mal-cheiro era tamanho que Ernesto chegou a pensar que todas as fossas do instituto desembocassem ali. A iluminação e a ventilação eram mínimas. Ao contrário de seus colegas, Ernesto imaginava se este ambiente precário não estaria influenciando na recuperação dos pacientes. Mas parecia que ninguém mais se importava.

Havia apenas um faxineiro no andar, que não deu a mínima atenção para a presença do médico ali. Virando a primeira curva, Ernesto chegou à cela do Carrasco. Parado a alguns passos da porta, chamou-o:

– Carrasco! – Pois não sabia seu nome.

Houve barulho de movimentos no interior e logo uma mão suja apoiou-se nas barras da pequena janela. Havia um rosto por trás daquela mão, mas não era possível distinguir com clareza suas feições, apenas uma barba por fazer e uma boca desprovida de vontade.

– Não te conheço. – A voz era calma, porém, ameaçadora. – E vejo que também não me conheces.

– Sou o Dr. Ernesto, recém-contratado pelo hospício para substituir teu conhecido Dr. Corrêa. Deves saber que ele faleceu há pouco. E se conhecesse teu nome, chamar-te-ia de acordo.

– O Dr. Corrêa foi um homem bom, mas não mais que um tolo. És o mesmo tipo de homem?

– Não posso comparar-me a alguém que não conheci. Na verdade, sei mais ao teu respeito que ao dele. E é por isso que venho aqui. Sei que ele tratava-te com terapias, com pinturas. – Ernesto aproximou-se cuidadosamente da porta.

– E foi aí que começou sua ruína. Ele buscava significado nas obras de um louco. Buscava razão onde só havia caos e insanidade. Mas só encontrou o que lá havia de fato: o caminho para a perdição.

Este homem não é louco, pensava Ernesto. Pode ter cometido crimes hediondos perante os olhos da sociedade, mas executou-os com lucidez e clareza, as mesmas que mostra agora. E, definitivamente, ele sabe de algo. Só preciso fazer com que confie em mim.

– Sei que o Dr. Corrêa ajudou-te a lidar com teus problemas. Li que encontrou uma maneira para que tu expresses aquilo que te incomoda. Que ele era capaz de decifrar tuas pinturas.

– Leu? – A risada que dele veio era como o rosnado de um animal perigoso. – Então és mais tolo ainda do que pensei. Em primeiro, por entregar-te a tais escrituras. E em segundo, por acreditar que o autor fora o Dr. Corrêa. Parte daqui enquanto é tempo, doutor. Não cometas o mesmo erro de teu antecessor. Não leias algo que nunca devia ser lido.

Ernesto não podia ver o homem dentro da cela, mas sabia que era alguém de certo porte, capaz de intimidar facilmente homens menores como ele. E era assim que ele se sentia, intimidado. A frieza do Carrasco e a revelação de que o autor do diário era outro foram bastante incômodas, fazendo com que ele quisesse sair dali o quanto antes. Mas não podia partir assim, sem sanar ao menos a mais crucial das dúvidas:

– Se o Dr. Corrêa não é o autor, quem é então?

– Achas mesmo que ele morreu como conseqüência da idade avançada? A verdade é perigosa, doutor. Foram perguntas deste tipo que cavaram sua tumba. – À medida que proferia estas últimas palavras, o Carrasco afastava-se mais para o fundo de sua cela, saindo totalmente do campo de visão de Ernesto.

* * *

A conversa com o Carrasco deixara-o completamente abalado. No lugar de respostas, ele encontrara apenas mais perguntas. Mas algo lhe dizia que ele estava no caminho certo. Havia um segredo final e ele estava bem próximo. O que quer que este segredo fosse, sua chave era o diário. Mas quem o escrevera?

O Dr. Corrêa havia sido apenas um leitor, atraído pela estranheza do diário da mesma forma que acontecia com Ernesto agora. Mas ele foi fraco e sucumbiu aos segredos e seus guardiões. Ernesto podia provar-se mais forte que ele. Podia tornar-se digno de chegar ao final da charada. E o caminho para tal, ele pensava, era descobrir quem era o autor daquele diário. Ele estivera aqui algum dia, pode ainda estar por aqui, vivo. Precisava encontrá-lo.

A solução parecia tão simples que, mais uma vez, privou-o de qualquer concentração no trabalho durante o resto do dia. Os afazeres foram todos terminados com pressa e sem atenção, completamente menosprezados se comparados à grandiosa tarefa de ler mais do diário. A noite finalmente chegou e o reencontro com as letras já familiares propiciou-lhe um alívio incomparável.

“15 de junho de 1897.

Finalmente, após meses, algo concreto em minha busca pela verdade. Se minha interpretação da última pintura do Carrasco estiver correta, obtenho ao mesmo tempo uma resposta a minhas indagações e uma arma contra aqueles que administram este lugar. A obra trata-se de uma retratação fiel do último andar e da escada que leva até ele. No topo, há apenas escuridão e figuras que podem ser entendidas como sorrisos sem dono. Ultimamente, o Carrasco tem falado muito sobre desrespeito, maus tratos e humilhação. Sempre de forma críptica, mas ainda capaz de ser relacionada com sua pintura.

Sou levado a concluir que o último andar é o local para onde ele foi levado e, lá, submetido a algum tipo de tortura, física ou mental, devido a algo que tenha presenciado aqui. Não sei ainda quais segredos ele descobriu, mas sei ao menos o que foi feito com ele. E pretendo fazer algo a respeito.

É chegada a hora de fazer frente aos demônios que se auto-intitulam restauradores da saúde mental. Levarei esta empreitada até o fim, ou meu nome não é João Batista. E deixo este diário, uma acusação contra todos os inescrupulosos médicos e funcionários deste lugar, para que, caso eu falhe e seja impedido de continuar minha cruzada, outros possam se armar com a informação necessária para subjugar os pecadores.”

Um nome! O detalhe de que ele tanto precisava! Restava agora saber se o tal João Batista ainda trabalhava no hospício, ou para onde havia partido, se ainda estivesse vivo. Era hora de alcançar o segredo final.

* * *

Ainda no meio da noite, Ernesto deixou seu quarto para investigar os registros dos médicos residentes. Era um assunto que não podia esperar até a manhã, quando seus adversários estivessem todos acordados e prontos para impedir suas ações. Na sala de registros, revirou todas as gavetas, todos os armários e baús, mas nem um sinal do que procurava.

Quando percebeu, um dos zeladores estava de pé na entrada da sala, olhando para ele com certo receio. Quando foi visto, o zelador se pôs na direção oposta e tocou um sino que havia no corredor. Surpreso com a reação do funcionário, Ernesto não sabia ao certo o que fazer. Ele já estava exposto, isso era certo. Quando os outros soubessem de sua incursão noturna aos arquivos, fariam um inquérito e logo descobririam que ele estava à procura de João Batista. Não havia mais tempo. Tudo o que restava a fazer era encarar de frente seus oponentes.

Dois psiquiatras e três enfermeiros logo chegaram à sala. Rapidamente, Ernesto percebeu a maneira como olhavam para ele e como se aproximavam. Ele já havia visto esse padrão antes, era a maneira como eles abordavam algum interno para detê-lo e controlá-lo. Era isso o que ele parecia para eles agora? Um lunático? Se pudesse ver a si mesmo, em meio ao caos que se tornara a sala de registros, com o semblante transtornado que exibia, chegaria à mesma conclusão. Enquanto os enfermeiros rodeavam-no, prontos para prendê-lo, Ernesto apontou o dedo para os médicos, que se mantiveram a certa distância e gritou:

– Não há mais como guardar este segredo! Mataram todos aqueles que sabiam, terão que matar a mim também! Mas não antes que eu diga ao mundo o que acontece aqui! O pobre João Batista estava certo! Ele foi o primeiro a descobrir toda a verdade! E o que fizeram com ele? Não só desapareceram com ele, como também fizeram desaparecer qualquer registro sobre ele! Suponho que o mesmo também tenha acontecido com o Dr. Corrêa, não é mesmo? Ele sabia demais... e teve o mesmo fim... E vejo que o próximo serei eu...

Os médicos trocaram olhares preocupados enquanto Ernesto se manifestava, um misto de pena e cautela. Os enfermeiros fecharam-se sobre ele e não havia mais como escapar. Uma seringa perfurou seu braço com violência e ele sentiu a consciência esvaindo-se sem esperanças de resistência. Seus gritos cessaram e ele ainda foi capaz de ver o diretor do hospício chegando no local, ainda de pijamas.

– Parece que ele teve certo tipo de contato com João Batista, senhor. – Um dos médicos lhe informava. – O melhor seria...

Os lábios mexiam-se, mas já não havia mais som. Logo, as imagens também partiram. Apenas as trevas permaneceram.

* * *

O silêncio foi interrompido por um constante som de lápis correndo sobre papel. Era um som irritante, rápido e incansável. Ainda assim, denotava certa familiaridade. Aos poucos, o som despertou seus outros sentidos. Quando foi capaz de distinguir os cheiros que sentia, preferiu voltar ao estado anterior, em que eles estavam ausentes. Mas eles diziam-lhe algo. Diziam que ele estava em algum lugar conhecido. Algum lugar escuro e profundo. O Inferno.

Sentando-se bruscamente, Ernesto colocou-se de costas contra a parede úmida, para que pudesse ficar de frente para a figura que compartilhava sua cela. A luz fraca não o ajudava muito a identificar seu companheiro. Podia ver apenas que ele também estava sentado, e seus pés estavam descalços.

– Quem... quem és? – A pergunta saiu bastante arrastada, sem dúvida por efeito das drogas que lhe haviam aplicado.

A escrita parou bruscamente e a voz que veio das trevas era calma e pensativa:

– Ah... despertaste. Bem-vindo, amigo.

O lápis continuou seu caminho incessante sobre o papel e Ernesto forçava sua memória a lembrar-se daquela voz. Era uma voz conhecida, mas em um tom diferente. Aproximando-se, ele pôde ver o queixo e as mãos e então se lembrou do Carrasco. Mas ele não falava tão calmamente nem usava óculos como agora. O lápis era incansável.

“6 de dezembro de 1898.

Acabo de descobrir que um novo paladino junta-se à minha cruzada. Ele encontrou meus relatos anteriores e prosseguiu com a busca. Agora que estamos do mesmo lado, serei capaz de ensiná-lo melhor como proceder a partir deste ponto. O pobre infeliz teve o infortúnio de ter sido agredido pelos internos assim que chegou e agora ainda se encontra atordoado, mas acredito que em breve poderá me auxiliar no tratamento do Carrasco.”

– Quem sou, perguntas? Meu nome é João Batista. Esperei muito por ti.